sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Ros, o vermelho


A cidade de Segou há muito não conhecia dias tão calmos. A rebelião no Mali afugentou os turistas, que aqui chegavam atraídos pela arquitectura de terra e madeira em redor de um dos portos fluviais mais antigos do continente. Outros faziam escala a caminho do deserto, ou vinham assistir a um dos muitos festivais de música nas margens do grande Níger. Muitos dos locais que fugiram à ameaça da invasão rebelde, vinda do norte, ainda não haviam regressado.

Alguns restaurantes fecharam portas. Os empregados dos hotéis ocupavam-se de conversas para passar o tempo enquanto os ventiladores refrescavam o vazio. Nas recepções dos hotéis diziam-se os preços antigos, para apequenarem os de pós-conflito: aliciar o pouco turista era agora uma questão de sobrevivência.
Entrei no restaurante de um hotel sem clientes, onde três empregados tropeçaram uns nos outros para trazer um menu.
Depois de escolher, olhei uma segunda vez à volta. Uma outra porta levava a um jardim, com mesas e cadeiras à sombra de uma grande palhota redonda. Parecia mais agradável comer ali. Ao sair para o jardim, vi que afinal estava acompanhado, uma das mesas estava ocupada.

Era um homem de origem europeia, de cabelos brancos e barba comprida, envolto no fumo do cigarro que ia chupando lentamente. Estava sentado em frente ao ecran do seu portátil antiquado, da garrafa de xarope de menta e da cerveja Castel. Perguntei-me que faria ali o outro único estrangeiro que vira até agora. Seria um escritor? Alguém à procura de não ser encontrado que acabou por ficar? Parecia ter uns 70 e muitos anos, e o sotaque do seu francês quando pediu o almoço ao empregado denunciou-o.

- És espanhol?
Perguntei.
- Sim. Quer dizer... Catalão.
Veio-me à cabeça o recente apoio popular à independência da região e comentei-o na expectativa de encontrar um adepto do separatismo.
O velho, com gestos de desagrado, esclareceu.
- Todo esse movimento independentista... Manipulado por elites! A luta pela independência tornou-se um capricho da burguesia. Rodopiam à volta do dinheiro e do poder, são independentistas financeiros. A ideologia e identidade falam baixinho perante o dinheiro... E tu, vens da América Latina?
Sorri e disse ser português. Perguntei o que o trazia a Segou.
- Com esta idade, já não tenho ar de quem trabalha não é?
Respondeu, divertido.
- Vivo cá. Fugi do barulho. Não do barulho da cidade... Nem sequer da sociedade! Mas do barulho ideológico.
Fez uma pausa, olhos fixos em algo que não estava ali.
- Voltei da América Latina para Espanha, há muitos anos, para me juntar aos comunistas contra Franco. Mas depressa percebi que os meus camaradas tinham mais sede de outras coisas, e nos anos que se seguiram à democracia, vi-os enriquecer e afeiçoar-se a altos postos nas hierarquias.

Um colibri, verde metálico a brilhar ao sol, de cauda negra comprida cuja ponta se separava em dois semi-arcos, sugava flores vermelho vivo ali ao nosso lado. Ambos o contemplámos.

- Cansei-me de incoerências, falsas revoluções. Apeteceu-me desandar e conhecer mundo. Foi nessa altura que comecei a vir para África. Viajei o continente inteiro.
O tom de desilusão transformou-se em entusiasmo quando descreveu montanhas e desertos distantes, vastas florestas e povos diferentes. Recomendou-me sítios, avisou-me de outros.
- Finalmente cheguei a Segou. Senti tranquilidade aqui. E há pouco barulho. Então fiquei.
E como te chamas?
- Sou Fernando e tu?
- Eu sou Pedro Ros. Ros, em Catalão, é vermelho.
Trocámos de número para um dia beber uma cerveja ao lado do Níger. Ele estaria lá, com todo o tempo do mundo, horas repartidas entre a escrita, a mulher e o pequeno filho – o primeiro, aos 70 anos, e o repouso.
Ros deu um último golo na sua cerveja.
- Foi um prazer, amigo. Está na hora de cumprir uma velha tradição que nunca perdi: a sesta.

Despedimo-nos e o velho retirou-se a passos lentos. Ia apanhar um dos táxi-moto que descansavam na praça em frente. Os rapazes que os conduziam conheciam bem onde ele morava.

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Lisboa Menina e Moura

Às portas da Mouraria, de frente para a Capelinha da Senhora da Saúde, no Martim Moniz, apercebi-me do fim de uma oração islâmica, assim que vi um grupo de crentes regressarem ao habitual bulício lisboeta. Mohamed, natural do Bangladesh e muçulmano praticante, vinha de uma mesquita no interior do bairro da Mouraria. Explicando-me como lá chegar, segui pela Rua do Benformoso adentro e quando dei por mim, estava já num beco esconso e com pouca luz solar, ladeado por pequenos prédios antigos.

Na Mesquita
A porta de entrada do templo era alta e verde. E através dela soprava uma agradável e convidativa aragem. “Centro Islâmico do Bangladesh”, lia-se num quadro de anúncios envidraçados na sala de orações. Lá estavam os horários das rezas assim como, ironicamente, o número de conta da mesquita para donativos, escrito em letras garrafais. Mamadou Diara, jovem de 30 anos, nascido na Costa do Marfim, ia de Odivelas até ali uma vez por semana. Somente para rezar. No aperto de mão de despedida dizia-me: “Tens que ir também a uma mesquita mesmo aqui ao lado!” Rua do Terreirinho, porta 86. Assim que ia a entrar, deparei-me com um senhor pequeno e anafado que terminara a sua reza. Chamava-se Ali, e ao perceber o meu intuito em conhecer a cultura islâmica no bairro, simplesmente me disse: “Come with me!” Por ruas mal iluminadas, seguimos até à mercearia onde trabalhava. O dono da loja, Akhtar ao ver-me chegar, veio conversar por uns minutos, reforçando que no Islão toda a gente é bem-vinda. E que primeiro que tudo, se defende a paz, a saúde e o bem-estar do mundo inteiro. São cerca de mil os habitantes bangladeshianos que tal como ele, habitavam ali na Mouraria. A vasta maioria deles, muçulmanos. Mas o verdadeiro mouro estava ainda por chegar.

O Verdadeiro Mouro
Quando me preparava para sair da mercearia, apercebi-me da entrada apressada de alguém que lá ia comprar carne no talho “halal”. As suas feições eram-me familiares. Remetiam-me para o Norte de África. Numa fração de segundos, guiado pela intuição, preparei-me para falar em francês. “Et voilá!” Finalmente conhecia alguém da região que foi a origem da civilização moura. Abdul era natural de Marrocos, parte da área geográfica do Magrebe, que inclui vários dos países que à época, perpetraram a conquista árabe de Portugal e Espanha. Abdul queixava-se “Aqui não se está muito bem. Não há dinheiro! E agora que fui pai, devo ficar mais um ano ou dois e vou-me embora!” Ao ouví-lo pensava na constante insatisfação dos portugueses com o estado das coisas. Seria essa uma influência mourisca? Talvez sim. Ou talvez fosse esta uma daquelas perguntas sem resposta.

Entrada da Mesquita.














Mouraria do Fado
Ao fim da tarde, continuava a subir pela Colina de São Jorge acima. Pela Calçada Agostinho de Carvalho que cruzando com a Rua dos Lagares, me dava uma agradável perspetiva sobre a rua onde crescera Mariza, a fadista. Subindo à direita a Calçada do Monte, cruzei a Travessa da Nazaré, morada do Grupo Desportivo da Mouraria. Conhecido no bairro pelas noites de espetáculos e concursos musicais de fado. De novo, pela calçada acima, cumpria a chegada à Graça. Lá em cima, numa matiné de domingo à tarde, entoavam-se fados de saudade e paixão, no habitual tom lânguido e triste.

Vários historiadores e musicólogos defendem que a origem deste estilo musical português está nos cânticos da população moura que habitou a cidade depois da reconquista cristã. Hoje em dia, vários séculos depois, ali ainda se entoa em canções a mesma mágoa e dolência. E ainda se reza voltado para Meca, seis vezes ao dia. É a Mouraria dos nossos tempos, que tanto se rejuvenesce, porto de abrigo à imigração mundial, como se conserva identitária, autêntica e fadista.

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Pausa no Tempo

Maputo, Moçambique

A tarde tropical de calor húmido e suado, assentava de novo na Aldeia da Massaca. Vilarejo nos arredores de Maputo que na sua autenticidade e pureza, sorvia a bucólica quando lá estava.

Uma chusma de miúdos passou por mim a correr, levantando a poeira das estradas que aparentemente ali não existiam.  E assim seguiam no seu tempo, a brincar.

Fora do grupo estava Sorte, criança que do seu nome pouco herdou por ter ficado orfã, e Gilda. Juntas viviam num orfanato ali nas imediações.


Na calma relaxada e soalheira que a experiente Vovó Juliana, assim era chamada pelos miúdos, detinha nas suas mãos, ia entrançando lenta e pacientemente, sentada na rua, o cabelo da Sorte, enquanto a Gilda esperava em bonomia pela sua vez.

O tempo parava por instantes ali em Moçambique. Mas caí em mim, e de novo, a viagem prosseguia.

domingo, 22 de setembro de 2013

O Fantasma do Sahara


Ali onde as areias acabavam e o mar começava, era a nossa estrada. Alan, Jasmine e eu seguíamos no opel, cheios de vontade de sul. Rumávamos entre fronteiras, a do deserto e a do oceano, a “terra de ninguém” amena que transformava aquela parte da travessia do Sahara numa agradável viagem de alguns milhares de quilómetros.

O Sahara Ocidental tem ares de terra ocupada. Barreiras policiais maroquinas frequentes investigam quem cruza as estradas desérticas. As poucas construções de estilo marroquino que vão aparecendo, com muita distância de intervalo, são recentes, não fosse esta uma terra de tendas.

Não é um panorama monótono, e o deserto desdobra-se em mil paisagens, ora de pedras e rochas, ora de dunas de areia, ora cascalho interrompido por alguns arbustos que reclamavam sobrevivência. Ao fundo, uma manada de dromedários deambula buscando o raro verde.

De repente, a estrada oferece uma possibilidade que não apenas o sul: uma pista arenosa para a direita, para o mar.
- É a direcção da costa, vamos?
Disse um de nós, falando pela vontade que todos tínhamos de ver água a perder de vista.

Poucos quilómetros depois e uns vultos ao fundo já interrompiam o horizonte amarelado, tremelicante com o calor que irradiava do chão. Eram objectos insólitos em tal contexto de secura. Barcos, com ar de já ter cumprido missão, gozando agora de reforma terrestre com vista para o mar.

A visão do grande azul do cimo da falésia aliviava a aridez de onde provínhamos. O vento soprava fraco, era o único som para além das ondas lá em baixo. Ali nem gaivotas piavam. Não se avistava ninguém.

Um caminho descia até à beira-mar. Decidimos percorrê-lo, haveria uma praia com certeza.
As escarpas estéreis eram feitas de rochas sedimentares, arenosas, de cores claras e formas erodidas. Lá em baixo, no fim do caminho, surge um conjunto de casas de cor cinza, à beira de uma praia serena. Ainda não se via vivalma. 



Ao chegar à localidade sem nome, confirmámos a sua natureza fantasma. Todas as habitações estavam vazias, portas e janelas abertas para um interior sombrio de usos pouco recentes. Que motivos para aquele abandono?

Já passeávamos entre o casario quando ouvimos sinais de vida. Uma presença rompia o vazio inquientante. Uma voz solitária juntou-se ao som do avançar lento de alguém. Apareceu finalmente o seu corpo. Um velho meio coberto de trapos, de face escura e endurecida, enrugada pelo tempo e pelo sol, de andar incerto, jeitos imprevisíveis.

O homem não nos olhou com olhos de ver, embora viesse na nossa direcção. Falava como se nada dissesse e a ninguém se dirigisse, numa língua que não compreendíamos. Era o imperador daquela desolação, réstia solitária da presença humana que ali houve. Há quanto tempo ali estava, aquilo que dizia, como gastava os seus dias, um mistério.

Desapareceu a deambular por entre as residências de ninguém, trocando palavras com a ausência de lógica. A sua voz desfez-se gradualmente. Regressara à condição de inexistência para o mundo dos vivos, fantasma solitário daquele ponto esquecido do Sahara.

domingo, 15 de setembro de 2013

Terra Austral

O vôo mais longo da minha vida chegava ao fim. Trinta e seis horas dentro de um avião que provinha da Argentina. E tudo isto para conseguir atravessar o Oceano Pacífico, para ver o sol raiar na Nova Zelândia, e ainda conseguir fazer o último trecho daquela ligaçao aérea, chegar até Sydney. Fez-se bem a viagem. Talvez porque grande parte foi durante a noite. O tempo passava enquanto estava desligado dos sentidos. Entoava-se um sono colectivo na cabine dos passageiros. Antes de levantarmos vôo reparava nas rostoss. Encontrei alguns brasileiros, um ou outro chileno, mas estranhamente muito poucos Argentinos. Mesmo sendo a passagem aérea mais barata da América do Sul para a Austrália, não havia esse hábito, ou essa posibilidade financeira. Sentia-me ali o único europeu ou “ocidental”. As pessoas do Brasil eram-me em especial familiares à vista. Atentei em especial numa senhora loira, bonita, e de semblante delicado. Imaginei desde o início da viagem que ela seria do sul do Brasil. Projetava-a como uma praiante de Floripa, do estado de Santa Catarina, ou então uma gaúcha emigrante naquela terra austral para onde seguíamos. Ela vestia umas calças de ganga, e calçava um par ténis para jogging. Tão típico, que esta conjugação me remeteu dde imediato para o Brasil. E estava certo! Percebi isso quando ouvi a sua voz. Via as caras das pessoas e ficava a imaginar o que fariam no país de destino. Ou apenas se iam para a Austrália ou para a Nova Zelândia. O que fariam no país de origem. Se calhar a moça brasileira, atendia nas mesas de um famoso restaurante de Sydney. Ou ficava a pensar, se por outro lado, ela iria aterrar em Auckland. Havia também a bordo, um brasileiro especialmente comunicativo, frequentemente sentado com os joelhos no assento e de tronco erguido destacado na cabine que falava em alto e bom som para os seus conterrâneos. Tornava público que ia para Auckland aprender Inglês. Eu só pensava para comigo "bolas, deves ter muita guita no Brasil, para fazer quase 10.000 km para aprender a língua mais falada do mundo". 

Uma hora depois a maioria já adormecera. Sobrevoávamos o Pacífico. E de facto fez-se juz ao nome, pois o trajecto decorrreu sem sobressaltos de poços de ar. Talvez por ter poucos ventos e correntes os descobridores tenham dado este nome ao oceano. Ao ver um dos pequenos ecrãs com o trajeto do avião, já na manhã seguinte, a linha em arco vinda de Buenos Aires entrava agora por terra adentro. Espreitei à janela, e avistava pequenas luzes amarelas. Nos poucos minutos que seguiram, assisti ao nascer do sol, o primeiro do planeta, onde a hora está adiantada. O sol começava a banhar aquela terra com um líquido dourado. E de repente levantava-se iluminava-se este país. Montanhas verdes, recortadas de pequenas estradas e casas. Um local onde há mais ovelhas do que pessoas. São conhecidos por "sheep-shaggers". A viagem prosseguiu para o último trecho. De Auckland, até Sydney. Países vizinhos, povoados na mesma época, com climas e tamanho distintos, mas tão próximos ao mesmo tempo. Enquanto a viagem prosseguia pensava nestas diferenças que os afastam. Reflectia nas relações entre os países, e como a história tanto os une, quanto o presente os tenta distanciar. Mas uma coisa era certa, a Nova Zelândia tem mais campeonatos do mundo de Rugby! 

Ainda antes de o avião aterrar, foi-nos entregue um formulário em forma de tira de papel. O governo queria perceber quem é que estava a aterrar no país. Pediam o nome, idade, naturalidade, número do passaporte, destino posterior à estadia na Austrália, enfim, uma série de burocracias, à qual, parece-me que, já não estava habituado, desde que Portugal entrara na União Europeia. Nesse papel, no meio de várias perguntas indiscretas e a desafiar os limites da privacidade, perguntavam-me se transportava comigo mais de mil dólares australianos, em bens ou numerário. Para responder, fui fazendo uma curta conta de cálculo mental: quatrocentos euros da máquina fotográfica, mais setecentos do computador portátil, que me tinha sido entregue no Brasil. E apenas por essa contaa, já ultrapassava a quantia indicada. Quando convertia para dólares dos E.U.A. que por sua vez estavam praticamente equiparados ao dólar australiano, seriam superiores ao valor que indicavam naquele formulário. Guardei a tira de papel comigo para depois a entregar aos guardas alfandegários, no aeroporto de Sydney. Esperei na fila, organizada com aquelas fitas em serpente tão habituais na Expo 98, com cerca de vinte pessoas à minha frente até chegar a minha vez. Tinha já entregue o formulário no início da fila a um agente, que entretanto analisava os registos que cada passageiro tinha feito, e depois quando chegava a ssua vez, lhe pedia explicações. Estava a tentar passar o mais relaxadamente possível, pois achava que não tinha absolutamente nada a que me pudessem apontar, mas mesmo assim nunca se sabe. Um pequeno nervosismo invadia-me sempre, associado ao pensamento "e será que não vai ser comigo que vai correr tudo mal". Pronto, e no meu caso, o guarda alfandegário quis mesmo falar comigo. Pediu-me os documentos, o bilhete de continuação, para que o governo se certificasse de que a minha viagem iria prosseguir para outro lado, e perguntou-me também o seguinte: "Você indica aqui que tem mais do que mil dólares. Pode explicar-me melhor?" "Sim, tenho uma máquina fotográfica que custou cerca de quatrocentos euros, um portátil que custou cerca de setecentos e mais algum dinheiro em numerário. Posso inclusivamente mostrar-lhe estes artigos tecnológicos." Ele retorquiu apenas com a seguinte expressão: "Hmm, ok, pode continuar." Enquanto torcia o nariz, mas via-se sem qualquer contra-argumentação. 

Primeira barreira superada para entrar na Austrália. Estava já fora do aerporto e tinha que chegar até à casa da rapariga que tinha decidido receber-me na cidade. A Sandra, uma miúda polaca de vinte e poucos anos a viver em Sydney. Achava impressionante a sua história. Tão nova, já tão independente e destemida a vingar pelo mundo fora. Ficava contente por ela. Tinha a sua morada anotada num papel e então uma fila de taxistas à minha frente. Carros brancos, Toyotas, com um ar de recém adquiridos, integrantes de uma enorme frota nova, de bom aspecto. Estavam estacionado numa fila em frente à saída do edifício das chegadas. O sol era forte, céu azul brilhante e carregado, numa planície isolada da cidade, rodeada de poucas construções. Fazia lembrar o sonho da Sarah Connor, no Terminator 2, em que chega o dia do apocalipse. Achei que podia dar-me ao luxo de escolher em qual dos táxis iria entrar. Afinal estava ainda treinado da América Latina, assim como de África. Alguns deles toparam a jogada e disseram-me logo para ir para o primeiro táxi de todos. Mas antes disso, e aproveitando que o condutor saíra da viatura para me ajudar a acomodar as malas na bagageira, tentei acordar previamente o preço, antes de entrar no carro. Ele só me dizia "Aqui isso não é necessário senhor." Entrei então e seguimos viagem. Dissera-lhe ser de Portugal, e ele que era da Turquia. Confessava-me "A Austrália é um excelente país. Só tem um problema: É longe de tudo!!!" Eu acrescentaria, e tem problemas de água potável. Ele levava cerca de trinta horas de avião para poder voltar à Turquia. Só lá podia ir uma vez por ano, no Natal, dizia com saudade. 



Chegara ao destino, e sabia já de antemão que a Sandra, não estava em casa. Na sua mensagem de resposta pelo Couchsurfing dissera-me "Vou estar no trabalho à hora que chegas, mas deixo as chaves de casa no café mesmo ao fundo da minha rua. Tens lá um envelope para ti." Já não era recebido assim desde a minha em Dakar, mas desta vez tinha uma vivenda “cottage” impecável de estilo inglês, restaurada e com jardim, à minha espera. Não estava mais ninguém em casa. Apenas eu. Uma boa decoração, a rua era agradével. Aquele cenário de recém-chegado ao país, parecia-me autenticamente um filme, tipo Notting Hill, mas com um clima muito mais solarengo e da europa do sul. Instalei-me em casa, onde havia uma sala central e espaçosa com um sofá colocado bem no meio. Era ali onde iria pernoitar. Despi-me e fui tomar banho, para revigorar da viagem. Estava encantado com aquela casa, a rua, o bairro e a cidade. Depois do banho quente, pude relaxar da viagem mais longa da minha vida. Buenos Aires até Sydney, em trinta e cinco horas de vôo! Ao final do dia, a Sandra chegava a casa. Logo ao falarmos as primeiras palavras, tinha a certeza que tinha ali uma excelente companheira para a estadia na cidade. 

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Gorom Gorom


Senta-te aqui connosco. É o que quer dizer Gorom Gorom, o nome de uma vila às portas do Sahara, no extremo norte do Burkina Faso.
É para lá que convergem todas as quintas-feiras camelos carregados de mercadorias dos vizinhos desertos do Mali e Níger, transformando a vila poeirenta num dos mais coloridos e fervilhantes mercados desta zona do Sahel africano.

Não foi fácil chegar a Gorom Gorom, por estar agora inserida na “zona vermelha” de segurança, devido à proximidade ao território controlado pelos rebeldes do Mali. Depois de muito debater com a polícia de Dori, a última cidade antes de Gorom Gorom, e de explicar que não me aventuraria para além da vila e das suas dunas de areia, e que não me demoraria mais do que uma noite, deram-me permissão para apanhar um dos toscos autocarros que percorrem as estradas cor-de-areia até à vila fronteiriça.

Já a postos para a partida, surgem de nenhum lado duas cabeças loiras. Dois locais precipitam-se para mim, dizendo que devia convencer as duas jovens dinamarquesas a não seguir também para Gorom Gorom, que elas nem uma palavra de francês falam. Voltamos à polícia, para uma nova negociação, desta vez mais dura e prolongada. A insistência concede-nos autorização para avançar mais para dentro do Sahel, eu feito tradutor.

O calor opressor do verão sahariano queima a paisagem à medida que o pequeno autocarro baloiçante e barulhento prossegue pela aridez. Algumas acácias espinhosas insistem em sobreviver e são subitamente interrompidas, quando surge à direita um enorme aglomerado de plásticos azuis e brancos, residências improvisadas para refugiados do Mali. Dizem-me que neste campo devem estar uns milhares.

À beira da estrada um pequeno grupo de tuaregues de rosto oculto pede por gestos para o autocarro parar. Nossos olhos procuram algo de ameaçador nas suas mãos, não fossem os repetidos avisos, mas nada encontram. O autocarro não pára.

Finalmente Gorom Gorom! Feita de habitações baixas cor-de-creme, entre as quais os minaretes de duas mesquitas sobressaem. Homens de rosto tapado por panos e mulheres cobertas de lenços passam pelas ruas de areia, numa tranquilidade só interrompida às quintas-feiras.
Encontramos alguém com camelos que nos leva para dormir às dunas. Chegamos ao pôr-do-sol, as areias douradas espalham-se e são pontuadas de algumas acácias, tamareiras e arbustos espinhosos.

Os camelos entretêm-se a mastigar algum do pouco verde e fazemos um fogo para preparar o jantar. Juntam-se a nós algumas crianças curiosas de uma aldeia perto. O velho chefe da aldeia também se junta, alguém trouxe uma cadeira para ele se sentar. 
Debaixo de um céu carregado de estrelas e ao som do crepitar da fogueira, o velho relata um pouco da vida antes da modernidade.

A paisagem pertencia aos grandes animais, era mais verde e caía mais água do céu. Tinham algum receio de se afastar da aldeia devido aos leões, embora um poderoso marabu local tenha feito um feitiço para que os animais caíssem em encantamento e não atacassem as pessoas.
Entretanto a paisagem secou, o deserto avançou, as grandes árvores desaparecidas, os animais eliminados.
- E porquê?
- Porque se perdeu a moral, se perdeu a solidariedade.

O sol raiou algumas horas depois, amarelando de novo os chãos. Na areia à nossa volta, centenas de pegadas e rastos de pequenos mamíferos, insectos e aves sobraram da madrugada. Era afinal frenética a vida que o tempo e a areia disfarçavam.


domingo, 11 de agosto de 2013

Falsos Reais

Em São Paulo, metrópole brasileira de treze milhões de habitantes, havia um bairro chamado Vila Madalena. Sim, chamava-se mesmo Vila, apesar de ser dentro da cidade, e destacava-se de todos os outros por ser boémio, de noites longas e muita diversão. Não era o único assim. Outros tinham nomes como Vila Mariana, Vila Prudente ou Vila Olímpia. Nas ruas ortogonais e antigas desse bairro, fundado por portugueses no início do século XX, por entre a azáfama dos bares, havia um sitio onde se alojavam viajantes de todo o mundo. Era uma pousada da juventude.

Lá dentro, no bar, todas as noites aconteciam eventos culturais. Desde concertos a sessões de DJs, vernissages ou serões de poesia. Nessas horas de grande bulício, esfolava-se em suor o funcionário Pedro. Jovem paulistano, de aspecto franzino e pele mulata. Todos os dias chegava ao centro da urbe, depois de um trajecto diário de duas horas desde a sua casa na Zona Leste, área infame da cidade, devido ao crime violento, tráfico de droga e pobreza.

Certa noite, actuavam no palco do bar, os Radiola Project, grupo musical de samba rock, que estava então a conquistar a cena musical da cidade. De casa cheia, previa-se que seria uma noite de boa facturação, mas o empregado Pedro, como sempre, trabalhava arduamente pelo seu salário. Numa azáfama completa, circulava constantemente entre a cozinha, o balcão e as mesas. Esta era o seu Triângulo das Bermudas, e para o cruzar tantas vezes tinha que pedir com licença aos clientes, com o prato redondo e metálico de garçon levantado acima das suas cabeças, pelo braço esguio e esticado de Pedro. Chegadas as três da madrugada, Pedro operava na caixa registadora, para atender aos vários clientes que estavam de saída. Dez por cento da conta ia para ele e sabia-lhe sempre bem ver esse dinheiro na sua mão. Esta percentagem para os empregados, logo incluída no preço final da factura era prática comum por todo o Brasil.

Diante dele, ao balcão para pagar a conta, de pé na penumbra do ambiente escuro do bar, vislumbrou dois homens de trinta e poucos anos, cujo boné de pala arqueada, dificultava que se lhes visse o rosto. Deram-lhe uma nota de vinte reais para a mão, equivalente a cerca de sete euros, apenas para pagar um copo de cerveja. Eles recolheram o troco de quantia elevada e foram embora.


Segundos depois, Pedro estranhava o toque da nota, pois parecera-lhe um papel de impressão comum, como o que havia no escritório da pousada, sem uma habitual sensação de aspereza, devida aos pequenos relevos. Retirou a nota da caixa e observou-a à luz de um pequeno candeeiro. A nota era falsa! Pedro saiu disparado pela porta e viu os dois larápios. “Seus Ladrões! Vão pagar por isto!” Gritou-lhes. Já em fuga, a cinquenta metros de distância, um deles vocifera: “Irmão, o desenho que está na nota representa a liberdade. Com ela, fazemos o que quisermos!"

--
João

Regresso pelo mar

Não sabia como regressar à Guiné-Bissau. Um amigo levara-me de mota através da selva, cruzando a fronteira, para a Guiné-Conacry, até ao porto de Kamsar, mas não faria a viagem de volta. Sugeriu que falássemos com o chefe do porto, que talvez me conseguisse o laissez-passer necessário para passar a fronteira, e então víamos se haveria algum barco para a Guiné-Bissau.
- “Ele é meu mano, não vai ser um problema”.

Kamsar é um lugar estranho. O porto e o centro da cidade, concessões de uma empresa americana de exploração de bauxite, vivem à sombra dos edifícios fumegantes da companhia que a explora. À volta do caminho de ferro que escoa o minério das montanhas para a costa, de onde segue para os Estados-Unidos, fez-se uma cidade à mão, que vai absorvendo guineenses de outras partes da região em busca de uma oportunidade.

Pelas ruas de pó e de palmeiras, homens de túnicas reúnem-se para começar a rezar, obedecendo ao muezzin. Passamos de mota quando já todos estão prostrados, em vários lugares à beira da estrada, e a cidade parece adormecer voltada para Meca. Chegamos pouco depois ao porto, tomado pela azáfama. O “mano” do meu amigo entrega-me um laissez-passer, conforme previsto. Barcos para a Guiné-Bissau não há, mas sim para perto da fronteira, e depois não há-de ser difícil arranjar uma boleia de mota. De acordo com uns, o barco partiria de madrugada às 4, segundo outros, às 5; outros ainda dizem que não haverá barco.

Tentar não custa. Chego ao porto pelas 4, ainda de noite, para evitar surpresas e vou até ao cais, onde um grande grupo de pessoas já transporta todo o tipo de mercadorias, em todas as direcções. No escuro, chapinham embarcações. 
 - Barco para a fronteira com a Guiné-Bissau? Sim, é por ali - apontam na direcção do mar.
Um estreito vão de pedra segue pelo mar dentro e distinguem-se uns vultos de barcos pouco depois. Sigo nessa direcção, de lanterna na mão e mochila cheia de comida, tentando manter o equilíbrio. O caminho de pedra desaparece subitamente debaixo do mar, permanecendo visível apenas para os pés. Avanço com mais cuidado e lentamente.Tentando que um mês de comida não se afogue já ali.
O barco ganha finalmente forma a partir do escuro, e eu agarro-me a ele com um alívio que não dura muito quando percebo que é ali que passarei as próximas horas.

Muitas pessoas já se amontoam dentro da embarcação, de 10 metros, por cima e ao lado de sacos de arroz, bicicletas, cestos, bagagens. Sem querer acreditar, tento perceber se é a única opção de viagem. É.

Salto com a mochila lá para dentro, onde já não havia lugar, mas onde continuam a chegar pessoas carregadas. Os pés molham-se no fundo do barco, cheio de água. Quantas horas de viagem? Uns dizem 4 horas, outros 6... 














Uma hora depois de mais pessoas e objectos, zarpamos, numa semi-claridade. Um homem ocupa de imediato a função que teria até ao fim da viagem: pega num balde e começa a recolher a água do fundo do barco, para a devolver ao mar. Assim que nos afastamos de Kamsar, uma paisagem imaculada surge com a manhã. Praias desertas de areia branca, rodeadas de florestas e palmeiras fazem-me esquecer momentaneamente a vulnerabilidade da madeira flutuante que me transporta. Só o motor e as conversas entre os passageiros interrompem a mansa manhã tropical. A viagem arrasta-se por muitas horas e o sol começa a queimar. A água de beber acaba-se, o homem do balde cansa-se. As 4 ou 5 horas já passaram há muito, ou não desconfiasse eu que a percepção africana do tempo me pregava mais uma partida.

Entramos finalmente por uma das mil rias de margens de mangal desta zona de África.
As paisagens e conversas distraem do sol quente, que vai no entanto enfraquecendo. Pratico as poucas palavras de soso que conheço, um pouco de francês, e finalmente crioulo, com uma mulher que ia para o mesmo porto. Um pouco de conversa revela que é a tia de um dos meus amigos de Gadamael. Parece que fico assim mais perto.

O sol já caminhou quase tanto como navegámos, e prepara-se para desaparecer. Por fim o barco chega. A viagem durou 13 horas. À nossa frente uma zona aberta por entre um mangal. Saltamos um a um, para a lama, e caminhamos para uma tabanca próxima, numa longa fila de homens, mulheres, crianças e bagagens. A tarefa de arranjar uma boleia de mota para a Guiné-Bissau não foi difícil, está apenas a 10 quilómetros.

Finalmente, Gadamael! E uma muito agradável recepção: “Já estávamos preocupados”.
Estava em casa.


Fernando

Relatos de Espanha

Em viagem,

Primeiros minutos em Espanha...




















...Nada de Diferente!!!


Em Viagem, Dia 1 – 10/06/2013

País Basco – Euskal Herria

Dia 10 de Junho de 2013, foi o início da minha jornada pela Europa e o princípio daquilo que gradualmente quero tornar num projecto de “Viver pelo Mundo”, sentir-me parte do Mundo, fazer parte dele! Chamar Casa a todos os locais por onde passe e construir Pontes pelo Caminho...

Tem um sabor especial a data de início da minha jornada ter coincidido com o Dia de Portugal. Assim, será fácil não me esqueçer quando começei e de onde vim!
















O primeiro dia começou então com uma prova de resistência. A subida ao mítico Monte Basco, Gorbea, 1481m, em Araba perto de Bilbao. Muito bem acompanhado pelo meu primo e pelos colegas dele.

Quem diria que ia ser tão difícil de acompanhar os alunos destes tipos...


José

Editorial

Bem-vindo(a) a bordo.

Somos um grupo de jovens intrépidos e devotos a viajar, com o objectivo de te contar o que vemos lá fora. Este espaço servirá exactamente para isso. Para partilharmos contigo os episódios e momentos mais marcantes e para te retratar as pessoas com as quais nos cruzamos pelo mundo.

Convidamos-te a visitar regularmente este blog, onde com certeza vais sempre encontrar relatos, fotografias e vídeos dos mais variados países, continentes e latitudes do planeta.

Saudações,
João A., Fernando S. e José P.
Portuguese Riders Crew