domingo, 22 de setembro de 2013

O Fantasma do Sahara


Ali onde as areias acabavam e o mar começava, era a nossa estrada. Alan, Jasmine e eu seguíamos no opel, cheios de vontade de sul. Rumávamos entre fronteiras, a do deserto e a do oceano, a “terra de ninguém” amena que transformava aquela parte da travessia do Sahara numa agradável viagem de alguns milhares de quilómetros.

O Sahara Ocidental tem ares de terra ocupada. Barreiras policiais maroquinas frequentes investigam quem cruza as estradas desérticas. As poucas construções de estilo marroquino que vão aparecendo, com muita distância de intervalo, são recentes, não fosse esta uma terra de tendas.

Não é um panorama monótono, e o deserto desdobra-se em mil paisagens, ora de pedras e rochas, ora de dunas de areia, ora cascalho interrompido por alguns arbustos que reclamavam sobrevivência. Ao fundo, uma manada de dromedários deambula buscando o raro verde.

De repente, a estrada oferece uma possibilidade que não apenas o sul: uma pista arenosa para a direita, para o mar.
- É a direcção da costa, vamos?
Disse um de nós, falando pela vontade que todos tínhamos de ver água a perder de vista.

Poucos quilómetros depois e uns vultos ao fundo já interrompiam o horizonte amarelado, tremelicante com o calor que irradiava do chão. Eram objectos insólitos em tal contexto de secura. Barcos, com ar de já ter cumprido missão, gozando agora de reforma terrestre com vista para o mar.

A visão do grande azul do cimo da falésia aliviava a aridez de onde provínhamos. O vento soprava fraco, era o único som para além das ondas lá em baixo. Ali nem gaivotas piavam. Não se avistava ninguém.

Um caminho descia até à beira-mar. Decidimos percorrê-lo, haveria uma praia com certeza.
As escarpas estéreis eram feitas de rochas sedimentares, arenosas, de cores claras e formas erodidas. Lá em baixo, no fim do caminho, surge um conjunto de casas de cor cinza, à beira de uma praia serena. Ainda não se via vivalma. 



Ao chegar à localidade sem nome, confirmámos a sua natureza fantasma. Todas as habitações estavam vazias, portas e janelas abertas para um interior sombrio de usos pouco recentes. Que motivos para aquele abandono?

Já passeávamos entre o casario quando ouvimos sinais de vida. Uma presença rompia o vazio inquientante. Uma voz solitária juntou-se ao som do avançar lento de alguém. Apareceu finalmente o seu corpo. Um velho meio coberto de trapos, de face escura e endurecida, enrugada pelo tempo e pelo sol, de andar incerto, jeitos imprevisíveis.

O homem não nos olhou com olhos de ver, embora viesse na nossa direcção. Falava como se nada dissesse e a ninguém se dirigisse, numa língua que não compreendíamos. Era o imperador daquela desolação, réstia solitária da presença humana que ali houve. Há quanto tempo ali estava, aquilo que dizia, como gastava os seus dias, um mistério.

Desapareceu a deambular por entre as residências de ninguém, trocando palavras com a ausência de lógica. A sua voz desfez-se gradualmente. Regressara à condição de inexistência para o mundo dos vivos, fantasma solitário daquele ponto esquecido do Sahara.