terça-feira, 24 de junho de 2014

Debaixo do Tamanogonogo


Debaixo do tamanogonogo, a grande árvore à beira do nosso campo, faz-se o chá e discutem-se os próximos passos do projeto de reflorestação. “A vida atrai vida”, diz a Stephanie, ao reparar que é debaixo da grande e fresca copa que escolhemos passar muito do nosso tempo quando não estamos de mão na enxada. É uma árvore alta, uns 30 metros, ramos possantes e numerosos, que se desdobram em vários andares de madeira, folha e frutos. Esses, vermelho-vivo, mostram-se quando as cápsulas que os albergam atingem a maturidade, chegando aos 6 ou 7 por cápsula. As cápsulas, de um vermelho mais claro, enfeitam toda a copa, impossíveis de contar. A cada dez minutos, uma solta-se e chovem frutos suculentos e doces, pausas ideias do calor que faz no exterior da sombra. De todos os ramos onde batem antes de chegar até nós, é lançado o aviso e amortecimento da queda dos frutos, que pousam quase suavemente perto de nós, antes em jeito de dádiva do que ameaça às cabeças.


Enquanto aquece o chá, Siaka fala-nos das muitas histórias mágicas que tem para contar. Ele jura que de vez em quando vê os wokoulonis, seres que habitam tanto na floresta como na cidade. São criaturas de cabelo longo e ruivo, de um metro de altura. Não gostam muito de humanos mas cada um tem a sua personalidade, uns mais perigosos que outros. Se alguma coisa acontece de mal, muitas vezes são eles a causa.  Foi um deles que uma vez o fez cair da mota quando voltava de noite de Sideradougou. Os ferimentos com que ficou não foram curados com os medicamentos do hospital, apesar de vários dias de internamento. Precisou de mezinhas mágicas, confeccionadas por um curandeiro, para sanar as feridas enfeitiçadas. Também são estas criaturas que incomodam muitas vezes as vacas, que começam a tremer sem motivo aparente e depois ficam doentes. Mas o medicamento de plantas do mato que ele preparou para o seu gado previne que isso aconteça.
Outro tipo de criatura que por aí anda é a suposta mulher jovem que aparece de noite numa ponte em Banfora, de vestes compridas e de grande beleza. Não responde se lhe disserem boa noite. Debaixo das vestes, escondem-se pés de cavalo. Foi esta criatura que matou o seu irmão, que uma vez decidiu segui-la, impelido pela ausência de resposta. Tocou-lhe no ombro, por trás, para chamar a sua atenção, ao que a bela criatura se voltou e fez um som agudo com os lábios, provocando uma imediata dor de cabeça ao rapaz. Morreu dois dias depois.
Antigamente, estas e outras criaturas foram escravizadas pelos homens, e foi assim que se construíram as montanhas, escavaram os lagos, fizeram-se os vales. As criaturas rezaram a Deus para ficarem invisíveis aos olhos dos homens, ao que Deus concedeu e desde então vivem entre humanos sem serem vistos, ou pelo menos só quando o desejam. “Vem tudo no Alcorão!”, insiste Siaka, devoto muçulmano, que nunca sai de casa de manhã sem contar 10.000 das suas contas de terço islâmico.

De noite preparamos o acampamento, ali perto do Tamanogonogo. Siaka e Ali removem as ervas com as pequenas enxadas no lugar onde vamos dormir, enquanto o sol desaparece, alaranjando o mato à volta. Ramos de árvore colocados a jeito e montamos o mosquiteiro. Pode ser que não chova.
O chão é duro, e só temos um plástico a separar-nos dele. Siaka e Ali voltam para casa, para Banfora e Koutoura, respectivamente.  Ficamos no mato com Salif, o míudo que guarda as vacas de Siaka.

Salif está sempre a sorrir. Solta um riso tímido cada vez que seus olhos se cruzam com os nossos. Por vezes observa-nos enquanto fazemos coisas ou falamos com alguém, e depois fica atrapalhado quando devolvemos o olhar, e ri-se fechando ligeiramente os olhos. É um Fula, e “os Fulas são duros desde pequenos”, diz o Siaka, também ele Fula, ao referir-se à dureza das tarefas de Salif.
Dorme ao relento perto da fogueira, onde cozinha arroz, que enriquece um fio de óleo de cozinha para o tornar mais interessante. Só tem uma colher, por isso hoje comemos todos à mão, agachados à volta do prato e com uma lanterna na mão esquerda, aquela que nunca toca na comida. O pouco francês de Salif e o meu escasso Dioula complementam-se num diálogo rudimentar de onde saem algumas informações pouco claras, mas também muitos risos. Tem 19 anos e guarda estas vacas desde os 15. Está habituado à companhia do gado, que só responde à sua voz. Siaka, nessa tarde, tinha parecido quase triste com isso, “As vacas não conhecem o seu dono, apenas quem as guarda”. O gado é o centro da vida dos Fulas.
Enquanto comemos arroz com óleo e conversamos, as nossas lanternas vão chamando cada vez mais insectos, e adicionam-se assim ingredientes ao nosso arroz simples, agora pontuado de pequenos seres voadores que ficam agarrados ao jantar. Inútil tentar removê-los.
Sentimos algo a passar rápido pelos pés e pernas. Muito rápido, nem se percebe o que é. De lanterna apontada ao chão percebemos que é um dos seres mais temidos destas horas da noite: o “cavalo do escorpião”.
Parece-se com uma aranha de grande porte mas anda muito mais rápido e com as patas da frente no ar, como se nada lhe pudesse fugir. As mandíbulas fazem medo de tão grandes e ao contrário dos outros habitantes da noite, não mostra medo do fogo, chegando perto das chamas e repousando nas cinzas escaldantes. De nós também não tem medo, e passa-nos pelos pés, fazendo-nos saltar um a um, de receio das suas famosas mordeduras. Salif põe-se numa dança, a tentar que o seu pé termine aquela correria desenfreada, mas sem sucesso. O cavalo do escorpião acaba por se retirar para o mato, para nosso alívio.
Pouco depois é a hora de dormir, debaixo das estrelas e ao som das chamas e das milhares de rãs que cantam no charco ali ao pé. Surgem os zumbidos de mosquitos, esperemos que fora da rede. Uns passos mais longe, ainda se ouvem os frutos do tamanogonogo, que se lançam lá do alto, tocando nos muitos braços da árvore antes de se juntarem aos que já formam um tapete vermelho açucarado aos pés da grande árvore.