quarta-feira, 1 de novembro de 2017

Engenheiro da Aldeia

Estávamos no mato de Moçambique, algures entre as províncias de Gaza e Inhambane. Um jipe viajava em missão de reconhecimento e levantamento de necessidades energéticas das aldeias nesta região. Um dos ocupantes era o Osvaldo, funcionário da fundação estatal que atribuía energia a localidades remotas do país. O outro era eu, a conduzir a viatura, funcionário duma empresa portuguesa que instalava os sistemas de energia renovável nessas aldeias. A paisagem era de árvores e mato denso. E as estradas não eram bem estradas, porque apenas havia dois sulcos paralelos recortando a paisagem, de onde aflorava areia, a essência escamoteada daquelas terras. Ali ao lado, a cerca de cem quilómetros estava o Kruger Park, o mais famoso parque de vida selvagem, com uma natureza tão bela e virgem quanto perigosa e mortal. Por mais que estivesse relaxado e focado nesta missão entre mãos, imaginava a possibilidade de nos cruzarmos no jipe com animais como leões, uma manada de elefantes enfurecida, rinocerontes, ou cobras, e quantas havia lá naquele país. A viagem prosseguia incessante e cronometrada. Depois de passar as aldeias de Mabote e Machaíla, conduzia a caminho de Chigubo. Era uma missão com prazos apertados, e uma gestão constante do combustível, horários, quilometragem, recursos alimentares, etc.

Nessa estrada, a certo ponto, soltou-se um estrondo ribombante a partir da parte esquerda do jipe, uma Mahindra, de fabrico indiano, ao mesmo tempo que a direcção do jipe ginou para a esquerda. Valeram as linhas fundas que faziam a estrada, por onde as rodas deslizavam, que mantiveram o jipe no trajecto. Saindo cá para fora, vi que o jipe estava com a roda de trás em baixo. E isto por causa de um tronco tombado na estrada, mas que por não estar completamente chegado para fora, a ponta ainda foi suficiente para embater na jante e assim abrir uma valente fuga de ar, por deformação de um aro da roda. Com o apoio do Osvaldo, martelei aquilo com veemência, usando chaves metálicas pesadas que vinham com o jipe. E o aro da roda ficou mais redondo, apesar de não estar fechada a saída de ar. O suficiente para seguir viagem pelo menos.

A população mais próxima estaria a cerca de uma hora de caminho, pela savana. Seguimos em frente. Não havia indicações, sinais nem quaisquer marcas rodoviárias. E claro, se nem estrada havia sequer. Tudo o que havia eram duas linhas paralelas que se tocavam num ponto de fuga, preso no infinito, assim como toda a restante savana. Mas por outro lado, só havia uma direção a seguir, e era difícil perdermo-nos se a viatura seguisse essas marcas. Enfim, atravessámos a mata densa e plana até ao limite da vista, para de repente se ver o firmamento moçambicano celeste que tão belo combinava com o sol radiante e tórrido africano. Finalmente uma aldeia. Primeiro uma escola, depois um conjunto de cabanas, simples, espartanas, de lama e palha, um pouco mais à frente. Ali ao lado um pequeno largo central daquela aldeia. Parei o jipe na entrada da escola. Com uma arquitectura de escola do período colonial, igual àquela em que o meu pai estudou, e a tantas outras espalhadas por Portugal e pelo antigo mapa colonial lusitano. Perguntei a um professor se conhecia alguém que nos pudesse arranjar a roda do jipe. Apanhados de surpresa, ele e a sua classe, ao que me pareceu, do ciclo primário, ficaram a matutar por instantes, para depressa o professor indicar o nome do Senhor Valter, a viver ali a poucos metros da escola. A aldeia era pequena, e por isso, lá chegámos depressa. No caminho as pessoas curiosas, acenavam, sorriam, aproximavam-se. Mas na correria para cumprir os prazos todos, e acima de tudo voltar com o jipe inteiro a Maputo, não houve o tempo para socializar. No pior dos casos, contudo, voltaríamos à boleia ou de "machimbombo", os autocarros locais. Por isso, haveria sempre solução, e uma estava para chegar.



Da casa que procurava brotaram logo à vista: uma grande antena metálica, com cerca de vinte metros de altura; um espaço aberto à entrada da casa com uma cobertura, e com utensílios de trabalhar madeira em cima da mesa, onde se viam móveis em construção. Ali havia espaço, algo que naquele país aliás havia com fartura, pleno de terra, área e vastidão. E as crianças brincavam cirandando entre umas mesas que estavam em torno da grande antena, provavelmente para sinais de baixa frequência, e o ateliê. Envolvendo este cantinho da aldeia, ondas sonoras brotavam de um rádio em cima das mesas cobertas, de onde se ouvia uma voz informativa da rádio, ainda que com o som familiar mas também incómodo, da desintonia analógica do antigamente que rarefaz a emissão devido à imensa distância que separava a recepção da estação de rádio. Enquanto me distraía com a magia da rádio, uma senhora, parecendo a mãe dos miúdos, aproximou-se de mim, e daí a aparecer o Valter, foram segundos, tendo ela ido chamá-lo. Com um fato de macaco azul náutico, um lápis encurtado pelo uso, pendurado no tubérculo da orelha, e uma carapinha africana já um pouco crescida, de quem é despreocupado com o cabelo, chegou o senhor. De semblante empático, tranquilo e disponível, ouviu a situação, e de poucas palavras, foi buscar numa casa de madeira ali anexa, os utensílios que considerou necessários. Ao abrir a porta desta barraca, caíram coisas cá para fora, em cima de nós. Só um, o Valter lá podia entrar, pois tamanha era a acumulação de todo o tipo de engenhos e materiais, não saberia ele para que momentos dariam jeito, mas que sendo tantos jorraram pela porta. Neste manancial de parafernália acumulada, ele saiu de lá com um martelo e uma bomba de ar, e com o adaptador certo. Pois, como para quem enche uma bicicleta, ter a peça adaptadora errada, deixar-nos-ia sem poder desfrutar daquelas rodas.

Os miúdos da escola já estavam todos cá fora em torno do jipe, e quando tirámos a roda do jipe, ainda mais miúdos se acercaram. Com o ângulo certo para usar a bomba de ar, o seu êmbolo deslizava lento e compassado, comprimindo o ar, preso naqueles cilindros. Para encher melhor, há que o fazer com calma. E assim foi, durante uns quinze minutos, em que voltámos a insuflar o pneu daquela roda. Aquele engenheiro ad-hoc da aldeia, salvou o momento, por ter aquela bomba algures perdida, saber usá-la como ninguém e por se ter disposto a fazer tudo isto pela genuína hospitalidade. A viagem podia seguir, com a roda martelada e enchida. Não deixando de pensar que nas aldeias, nas pequenas comunidades e grupos, há espaço para uma pessoa se realizar a si mesma e contribuir para o grupo social, como sendo o engenheiro, o reparador de problemas, que guarda utensílios, faz móveis, capta os sinais de rádio oriundos de centenas ou milhares de quilómetros de distância. Há necessidade deste conhecimento, há reconhecimento pelo seu trabalho e as mulheres da aldeia apreciavam estas valências, reparava. O meu pai também é assim, um engenheiro auto-didacta, sem qualquer diploma, mas uma vasta experiência em mecânica e electrónica, aprendida pela necessidade, em estaleiros da guerra colonial. E algo disso terá passado para mim. Mas naquele dia faltou-me equipamento. Felizmente havia um engenheiro da aldeia com uma bomba de ar por perto. Porque, na minha opinião sempre há espaço para um, até onde menos esperamos.

João Aguiar