segunda-feira, 5 de maio de 2014

Gente Boa

Escrevo de Dakar, capital do Senegal, uma cidade aparentemente pacífica e talvez mais segura do que muitas cidades europeias. Paris, por exemplo, é mais violenta. Carteiristas, criminalidade, roubos violentos, ou o passado recente de convulsões nos bairros sociais, deixam-me a pensar como a arrogância dos países mais poderosos do mundo serve para espezinhar as nações mais pobres, propagandeando estes últimos como países de guerra. Quando se entra no Senegal, lê-se num enorme cartaz a antítese desta política. Nele li escrita em letras grandes e evidentes, a palavra "Teranga", expressão local que descreve exatamente o espírito acolhedor e pacífico dos senegaleses.

Já passara uma semana desde que cheguei a Dakar no camião de dois espanhóis, o Frankenstein, como o batizaram. Eles ficaram instalados na pousada Chez Soukeye, na Baía de Ngor, a zona de praias da cidade (uma espécie de Carcavelos lá do sítio!). Quando cheguei, contatei o primo de Bourama, um amigo senegalês que conheci no projeto de alfabetização de imigrantes, no Bairro Seis de Maio, e que me presenteou alguns contactos da sua família. Uma ajuda para o caminho. O seu primo Amadou morava em Cambérene, um bairro periférico de Dakar, numa casa simples de apenas uma divisão e uma varanda, onde guardava também a sua galinha de estimação. As casas-de-banho do prédio eram em átrios comuns e partilhadas pelos habitantes de cada piso. Ao sair do prédio pisam-se estradas de areia que ligam as ruas do bairro.

O canto onde eu pernoitava, acolhia um colchão vetusto e deslavado, no reduzido espaço sobrante da casa de Amadou, que era pequena mas viver lá era, para ele apenas mais um esforço até que a sua nova casa, uma vivenda num subúrbio bucólico de Dakar, estivesse construída. Com ela, pretendia iniciar um pequeno negócio hoteleiro, alugando os quartos a viajantes, à semelhança da casa onde os espanhóis do Camião Frankenstein ficaram. Depois de uma noite em casa de Amadou, percebi que seria difícil manter-me instalado por lá mais dias, e por isso volvi à zona balnear de Dakar. Para me instalar novamente com o grupo de espanhóis, oriundos do País Basco. Quando chegava àquela região, algo me fazia relaxar e sentir uma boa vibração. Talvez do mar, das ondas, do seu marulhar ou da vida despreocupada e da bonomia dos locais.


Depois de uns dias por lá, pesquisei por um "sofá" disponível na rede "couchsurfing" (surfar no sofá, traduzido à letra), e fui aceite por um rapaz americano. David, que estava a fazer uma investigação sobre a SIDA no país. À data que vos escrevo, já passaram cinco dias desde que cheguei, e posso contar-vos que já conheci os seus vizinhos, os seus amigos, mas não há sinal dele! Anda por Louga no norte do Senegal, a trabalhar no seu projeto. Mas ainda mais esperançoso do que ele me ter respondido positivamente na rede de hospitalidade, foi o facto de ele não estar em Dakar para me receber à data da minha chegada. Em vez disso, depositou a sua plena confiança num desconhecido, e deixou as chaves de casa com a vizinha da frente. Há gente boa no mundo.


Texto a ser incluído no livro de crónicas de viagens do autor, a ser lançado em breve.