sexta-feira, 17 de julho de 2015

Um Dia em Tetouan

Levantou cedo. Uma janela entreaberta depois de um cigarro tardio deixou entrar logo ao alvorecer, o som da chamada à oração difundido pelos altifalantes da mesquita, acordando assim o desprevenido viajante. Desce agora a Avenida Mohamed V, de mapa na mão, não vá falhar o local onde é necessário voltar à direita para então rumar à Gare «Routière» de Tânger. O trânsito é intenso àquela hora da manhã. Repara como alguns peões se aventuram a atravessar por entre os carros, que teimam em não abrandar mesmo nas passadeiras, mas que acabam por parar no último instante ou contornar os assustados transeuntes, que muitas vezes aguardam pela chegada de companhia que lhes permita avançar em pequeno grupo e cruzar mais facilmente a larga avenida. Não há que enganar. Só pode ser ali. Um imenso edifício rodeado de dezenas de autocarros. Entra e procura as bilheteiras mas não as encontra no meio daquele turbilhão de gentes arrastando sacos e malas. Entre os passageiros que se entrecruzam ouve então pregões gritados compassadamente: «Rabat, Rabat, Rabat», «Chefchaouen, Chefchaouen, Chefchaouen», «Tetouan, Tetouan, Tetouan». «Tetuan?» pergunta-lhe um jovem agarrando-lhe o braço. Responde que sim e rapidamente sente-se conduzido por entre a multidão até uma porta que dá acesso a um pequeno átrio cheio de bilheteiras dotadas de corrimões metálicos destinados a orientar as filas que se deveriam estar a formar mas que estranhamente não existem. Não se orientaria ali com os letreiros escritos em árabe mas também não precisa. O jovem leva-o até um homem sentado num dos corrimões diante de uma bilheteira vazia. Cinco «dirhams» e recebe um pequeno bilhete completamente escrito em árabe. E agora? Os autocarros às dezenas que estão estacionados no exterior não têm placas indicativas, nem números ou sequer letreiros, nisso já tinha reparado. Mas é para estas coisas que servem os guias, mesmo que de ocasião como é o rapaz, que lhe volta a agarrar no braço e o conduz gare fora até um dos muitos autocarros estacionados. No fim a gorjeta claro. Tem de ser. Mas que preciosa tinha sido a ajuda, pensa o viajante enquanto sobe para o autocarro. O veículo não é nada novo, lá isso não. Mas não deixa de ser confortável mesmo com os estofos já gastos e nalguns sítios rasgados. Há ainda muitos lugares vazios. Mas os passageiros vão chegando. Um homem vestido de forma tradicional entra e vai distribuindo uns livrinhos pelos passageiros. A ele não, que se topa à légua que é estrangeiro e seria incapaz de ler o que quer que seja escrito em árabe. Depois é a vez de um vendedor de perfumes e bugigangas. Pincela a mão de cada passageiro com uma espécie de um «baton» que deixa no ar um perfume refinado. Este não discrimina os estrangeiros, pensa enquanto aspira a essência com que também foi presenteado. Em poucos minutos o autocarro enche e arranca. Atravessa primeiro os arredores de Tânger, bairros novos de casas baixas com árvores nas ruas depois a Estação Ferroviária onde faz uma primeira paragem antes de se fazer à estrada. Uma hora é quanto demora a percorrer a distância entre Tânger e Tetouan numa estrada asfaltada e em boas condições. O viajante desfruta da paisagem. A princípio aplanada para depois entrar na montanha verdejante e coberta de árvores. Da janela deixa-se encantar pelos burros albardados que esperam pacientes os donos na beira da estrada, pelos pequenos mercados, por uma bancada que vê cheia de «tadjines», a rainha das peças de cozinha marroquina, em variados tamanhos. Fica com pena de não puder descer e comprar uma de barro simples, tão diferentes das decorativas que se impingem aos turistas nas grandes cidades.

Vista do centro de Tetouan - de Anassbarnichou2 - Licença CC BY-SA 3.0

Tetouan surge ao longe. Casas brancas descendo numa encosta rodeada de nuvens baixas, que a Primavera em Marrocos prega destas partidas, e hoje vai chuviscando de quando, em quando. O seu nome é de origem berbere, essa língua antiga do Norte de África, e significa olhos, olhos de água. A cidade tem origens muito antigas, não muito longe dali, foram encontrados vestígios fenícios e do Império Romano. Ao longo dos tempos muitos povos passaram por Tetouan ou não estivesse tão próxima como está do Estreito de Gibraltar. A cidade funcionou durante séculos como centro de ligação entre o norte de África e o sul da Península Ibérica que estiveram politicamente unificados até à ao final da Reconquista com a queda de Granada em 1492. Depois da Reconquista muitos dos expatriados refugiaram-se em Tetouan tendo a ultima vaga de muçulmanos vindos de Espanha chegado no ano de 1609 expulsos em massa pela Inquisição. Também expulsas pela Inquisição ali chegaram importantes comunidades judias no século XV provenientes de toda a Península Ibérica. A cidade manteve sempre intensas trocas económicas e culturais com o sul de Espanha e foi protectorado Espanhol de 1912 até 1959 altura em que foi finalmente integrada no Reino de Marrocos. Pensa nisto o viajante quando se aproxima e começa a entrar nas primeiras ruas da cidade, ruas modernas ladeando o rio que corre num vale verdejante situado aos pés da montanha, coroada desde a meia encosta, pelo vasto casario largo e branco da cidade antiga. O terminal rodoviário de Tetouan, onde desce, é um espaço organizado e de planta moderna. Um edifício não muito diferente de um terminal rodoviário de qualquer pequena cidade na Europa. Surpreende-se com os letreiros bilingues, escritos a verde sobre um fundo branco em árabe e em francês. Repara na Sala de Orações, mas não consegue ver como ela é por dentro, isolada que está dos olhares dos curiosos. Mesmo assim, quando a porta se abre para dar entrada a um crente em viagem, repara que no chão existem espaços desenhados e delimitados para a oração. Outra surpresa, são as casas de banho. Com apenas uma torneira perto do chão, um balde e uma bacia sanitária à turca fixa ao solo. E não fossem estes pormenores, ou as gentes que por ali circulam, e o viajante poderia sem dificuldade achar que estava na Europa. Mas não está. Disso se vai aperceber rapidamente quando depois de esperar na fila de táxis consegue entrar num e não é capaz de se fazer entender com o taxista. Nem francês, nem inglês. Talvez tivesse sido mais bem-sucedido se tivesse utilizado o Espanhol ou o Português mas tal não lhe ocorreu na hora e na atrapalhação. Afinal na cidade falou-se espanhol até aos anos sessenta e isso claro deixou marcas. Faz uma segunda tentativa que resulta igual. Só à terceira tentativa se faz entender e combina o preço da viagem, como todos os roteiros feitos para turista aconselham, roteiros esses, onde aprendeu também a distinguir os «petit táxi», das viagens urbanas dos «grand táxi», que fazem os percursos mais longos entre cidades. Combinado o preço, apenas 10 «dirhams» o equivalente a um euro, arranca rumo ao centro da cidade. Percorridos apenas algumas centenas de metros o simpático taxista acena a uma mulher e pára. Uma amiga? Uma cliente? Fica sem saber. É hábito em Marrocos os táxis recolherem vários passageiros durante o percurso. A mulher entra, cumprimenta e para surpresa do viajante fala um francês perfeito. Logo lhe dá as Boas Vindas a Tetouan e a Marrocos e enquanto conversa traduz ao jovem taxista o que vai sabendo. Não é a primeira vez que uma coisa assim acontece. Se os jovens em geral dificilmente entendem uma frase em francês, as pessoas de mais idade e de mais elevada escolaridade falam-no com fluência. As línguas oficiais de Marrocos são o Árabe numa versão própria e o Berbere minoritário em vários dialectos. O Francês é ainda bastante usado nas instituições governamentais e no mundo dos negócios embora esteja em declínio como o viajante irá perceber mais adiante quando visitar uma livraria repleta de títulos escritos em árabe e se deparar com uma única e exígua prateleira com não mais de trinta títulos em francês, quase todos clássicos.

No caminho, sempre a subir, ainda consegue ver uma manifestação de sindicalistas com uma pequena faixa desfraldada junto à estrada mas fica sem saber o que reivindicam. Marrocos é uma monarquia onde alguns se queixam por vezes de ataques à liberdade de expressão e a questão nunca resolvida do Saara Ocidental ocupado permanece como uma nódoa sobre o país. O táxi deixa-o mesmo no centro da cidade e ruma à Medina, a cidade antiga, classificada como Património Mundial da Humanidade pela UNESCO. Antes passa por uma larga avenida pedonal que vai desembocar na Praça Hassan II onde se encontra um dos acessos à Medina. A avenida está repleta de lojas modernas e cafés com esplanadas. Os edifícios são altos e muito bem cuidados alguns com marcas de um estilo muito semelhante aos que se encontram em todo o sul de Espanha. A Praça Hassan II é dos anos oitenta e nela se encontra o Palácio Real. Sabe o viajante que a construção desta praça foi feita sobre os escombros da antiga Praça Feddán, local de reunião emblemático da cidade, e que o imponente Palácio Real ocupa o espaço onde estava o Alto Comissariado Espanhol porque a História tem destas coisas e o monarca quis ao mesmo tempo apagar os traços do anterior poder colonial e algumas veleidades autonómicas que a região sempre teve. Aqui ao contrário do que viu em Tânger os turistas são poucos e o assédio de improvisados guias é nenhum. Por isso dá uma volta descansado pelo mercado, o «souk», de uma das laterais e aproveita para comprar um saquinho de morangos não sem antes provar dois que lhe foram oferecidos pelo simpático vendedor. Estavam lavados sim, e mergulhados em água numa bacia imensa. E inflige assim aquela regra básica que houvera aprendido: Cozido ou descascado, mas dai não lhe virá nenhum problema e os morangos eram realmente magníficos e vieram mesmo a calhar antes de se aventurar na Medina.

A Medina ou cidade antiga a que se acede a partir desta praça é um vasto e labiríntico espaço de casas baixas, imaculadamente brancas e ruelas estreitas cercado por uma muralha com cerca de cinco quilómetros de extensão e apenas sete portas de entrada. Aventura-se o viajante a entrar por ali adentro sabendo de antemão que se irá perder mas não se preocupa agora com isso. Avança nas ruelas que se bifurcam sinuosas e espreita as lojas, perde-se na imensidão dos produtos expostos, desfruta dos odores e das cores das frutas frescas, dos legumes, das comidas, ofusca-se com o brilho dos metais e das joias expostas, com os objectos de couro e madeira e vai reparando nas portas verdes, nos ladrilhos policromos, nas coberturas colocadas sobre as ruelas que cortam o sol, nos artífices trabalhando nas soleiras das portas dos seus estabelecimentos, nos arcos das casas que atravessam por cima das ruas e formam aqui e ali pequenos túneis que tem de transpor para chegar a novas ruelas que outra vez se bifurcam e derivam a todo o momento noutras sempre iguais e sempre diferentes, algumas com degraus, outras com fontes, abrindo-se em novos recantos a cada esquina. E com isto logo se perde e atravessa sem perceber o «Mellah», o antigo bairro judeu onde as ruas são rectilíneas e as pequenas praças quadrangulares e descobre ainda, quase por acaso, uma pequena mesquita isto enquanto deambula por entre o bulício de vendedores e habitantes na sua maioria vestidos com a tradicional «djellaba», uma espécie de robe largo que chega até aos pés com mangas compridas e um capucho largo que termina numa ponta em bico. E de tanto ver era certo e sabido que se perderia. Admite agora que deveria ter seguido o conselho, que não se deveria ter aventurado na Medina de Tetouan sem a ajuda dum guia. Agora só perguntando. É o que faz pois não tem outro remédio. Depois de muitos enganos e perguntas lá consegue encontrar a saída e chega cansado mas feliz à grande praça de onde tinha saído horas antes. Nada melhor que descansar antes do regresso a Tânger, onde se hospedou e tem cama e mesa à espera. Escolhe um café com esplanada, pede um chá de menta e fica ali a olhar para quem passa. Já não estranha que no café só estejam homens porque a isso já se habituou. Nem estranha as diferenças nos vestuários das gentes que atravessam a rua. Porque se muitos usam o vestuário tradicional, outros vestem-se como em qualquer cidade da Europa. E se é verdade que a maioria das mulheres cobre os cabelos com um véu também é verdade que outras, sobretudo jovens, ostentam livres o seu cabelo ao vento.

Antes de partir ainda vai entrar numa livraria. Não é grande, mas é bonita com estantes em madeira antiga. Deve ser sem dúvida do período colonial. Perde-se entre os milhares de títulos expostos todos em árabe. Rebusca, vasculha, olha e não encontra nada em francês, espanhol ou inglês. A livreira que o tinha saudado à entrada depois do seu sonoro «Bonjour» é uma mulher de meia-idade de cabelo coberto por um véu e um vestido que lhe cobre todo o corpo e os braços, como os que a maioria das mulheres marroquinas usam. Aproxima-se dela e procura por títulos em francês. A mulher indica-lhe num francês perfeitíssimo uma pequena prateleira numa lateral próxima da entrada. Não mais que trinta livros. São quase todos clássicos franceses. Repara no «Le Petit Prince» que já tinha visto numa magnífica versão em árabe, mas de autores marroquinos só encontra um livro de poesia de um autor radicado na Bélgica e um estudo sobre as migrações no Mediterrâneo. E fica preocupado com o futuro da língua de Molière naquela parte do mundo. Ainda encontra um jornal bilingue em árabe e francês mas pouco mais. Do passado colonial, tirando a arquitectura, fica com a impressão de não restar muito hoje em Tetouan. E já dentro do táxi, de regresso, enquanto se despede da cidade, vai meditando na riqueza que o encontro de povos e culturas criou nesta cidade que foi durante séculos o entreposto entre o norte de África e a Europa. A Pomba Branca, como é conhecida a cidade, resplandece ao fim dia na montanha, enquanto um fugaz Arco-íris se acende no horizonte.

AP