terça-feira, 27 de maio de 2014

Abri a janela para deixar o tufão entrar

Já há alguns dias que nos estavam a avisar que naquela quarta-feira um tufão ia passar perto da nossa vila. Eu tinha chegado ao Japão há poucas semanas para fazer um estágio de três meses numa fábrica nos arredores de Quioto. Tinha ouvido umas conversas sobre o tufão mas não liguei muito - de certeza que não havia risco nenhum. Afinal havia tantas regras estranhas para tudo!

Até que chegou a quarta-feira. Só quando os altifalantes da fábrica anunciaram, alto e bom som, que por razões de segurança deveríamos ir para casa o quanto antes, me voltei a lembrar do tufão. Pelos vistos o dito estava a menos de duas horas de distância e isso queria dizer que nos tínhamos de despachar. No autocarro de volta ao dormitório reparei que o céu estava cada vez mais cinzento, mas não parecia que fosse mais uma tempestade... Estava bem mais preocupado com não ter nada para jantar. Pior: o mais certo era que os restaurantes da vila estivessem fechados. A nossa preocupação — minha e de mais dois amigos estrangeiros, meus colegas de estágio — era saber o que fazer com o tempo que faltava até ao fim daquela confusão. Entre piadas sobre o exagero de tudo aquilo, lá chegámos à conclusão que a primeira coisa que devíamos fazer, mal chegássemos ao dormitório, era ir à vila comprar umas cervejas e alguma comida. Afinal ainda tínhamos pelo menos hora e meia até o tufão chegar, e o supermercado mais próximo ficava só a 10 minutos de bicicleta.

E foi isso que fizémos: chegados ao dormitório fomos imediatamente buscar as nossas bicicletas. O contínuo e a sua esposa, sempre preocupados, imploraram-nos para que ficássemos. Diziam que a tempestade estava mesmo a chegar, e que era perigoso sair. Mas lá fomos, divertidos, pedalando. O céu estava a ficar cada vez mais escuro, com a chuva cada vez mais forte e o vento bem mais indeciso: começava a soprar com força, vindo de todos os lados. Lá chegámos à vila, onde encontrámos a maioria das lojas já fechada ou em vias disso, muitas com tapumes a cobrir as montras. Conseguimos entrar no supermercado por pouco, onde os empregados nos cumprimentaram com um sorriso nervoso, de quem se queria despachar depressa e não sabia bem o que estávamos a fazer ali. E foi aí que, pela primeira vez, percebemos que nunca devíamos ter saído do dormitório. Sem grandes hesitações comprámos o que precisávamos e saímos o mais depressa possível. O vento, a chuva, a cor do céu: tudo nos dizia que não deveríamos estar na rua naquela altura. Estradas desertas, os pedais pesados, as pontes que pareciam ziguezauear à nossa frente. Foram uns longos quinze minutos (ou meia hora, nem sei bem...) que demorámos até ao dormitório. Chegados lá tínhamos à nossa espera o contínuo, a sua esposa e alguns colegas; todos se riram quando entrámos,e alguém nos disse que por pouco não ligaram à polícia para nos irem procurar.

Devia faltar pouco menos de uma hora para o pico da tempestade chegar. Decidimos ir para a sala comum partilhar as cervejas e os pacotes de batatas frita que heroicamente, tínhamos acabado de resgatar da vila. Aos poucos a chuva lá parecia querer acalmar, e foi então que o céu começou a mudar de cor: nunca tinha visto uma cor tão bonita- o céu estava a ficar em tons amarelo-alaranjados - tudo aquilo parecia irreal. Só era uma pena aquela janela - alta, grossa, suja. Pior: a janela era feita de vidro reforçado com arame, o que em nada ajudava à visibilidade! Tinha que tirar uma fotografia a estas cores únicas - queria uma recordação do meu primeiro tufão por terras do Sol Nascente!

E foi por isso que resolvi abrir a janela. Mal rodei o puxador a janela fugiu-se-me das mãos, e ao mesmo tempo que deixou o vento entrar sala adentro aplicou-me, certeira, uma valente pancada na cabeça. Eu caí, desarmado (e desmaiado, acho), redondo no chão. Acordei um tudo nada depois, tonto, com os meus amigos a rir-se com tamanha proeza. E lá ficámos, a deixar o resto do tufão passar. Quanto à fotografia? Essa não ficou nada de especial - apenas mais um céu escuro, tremido. Infelizmente não tenho provas dos tons de laranja (e muito menos dos amarelos).

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Luis

segunda-feira, 5 de maio de 2014

Gente Boa

Escrevo de Dakar, capital do Senegal, uma cidade aparentemente pacífica e talvez mais segura do que muitas cidades europeias. Paris, por exemplo, é mais violenta. Carteiristas, criminalidade, roubos violentos, ou o passado recente de convulsões nos bairros sociais, deixam-me a pensar como a arrogância dos países mais poderosos do mundo serve para espezinhar as nações mais pobres, propagandeando estes últimos como países de guerra. Quando se entra no Senegal, lê-se num enorme cartaz a antítese desta política. Nele li escrita em letras grandes e evidentes, a palavra "Teranga", expressão local que descreve exatamente o espírito acolhedor e pacífico dos senegaleses.

Já passara uma semana desde que cheguei a Dakar no camião de dois espanhóis, o Frankenstein, como o batizaram. Eles ficaram instalados na pousada Chez Soukeye, na Baía de Ngor, a zona de praias da cidade (uma espécie de Carcavelos lá do sítio!). Quando cheguei, contatei o primo de Bourama, um amigo senegalês que conheci no projeto de alfabetização de imigrantes, no Bairro Seis de Maio, e que me presenteou alguns contactos da sua família. Uma ajuda para o caminho. O seu primo Amadou morava em Cambérene, um bairro periférico de Dakar, numa casa simples de apenas uma divisão e uma varanda, onde guardava também a sua galinha de estimação. As casas-de-banho do prédio eram em átrios comuns e partilhadas pelos habitantes de cada piso. Ao sair do prédio pisam-se estradas de areia que ligam as ruas do bairro.

O canto onde eu pernoitava, acolhia um colchão vetusto e deslavado, no reduzido espaço sobrante da casa de Amadou, que era pequena mas viver lá era, para ele apenas mais um esforço até que a sua nova casa, uma vivenda num subúrbio bucólico de Dakar, estivesse construída. Com ela, pretendia iniciar um pequeno negócio hoteleiro, alugando os quartos a viajantes, à semelhança da casa onde os espanhóis do Camião Frankenstein ficaram. Depois de uma noite em casa de Amadou, percebi que seria difícil manter-me instalado por lá mais dias, e por isso volvi à zona balnear de Dakar. Para me instalar novamente com o grupo de espanhóis, oriundos do País Basco. Quando chegava àquela região, algo me fazia relaxar e sentir uma boa vibração. Talvez do mar, das ondas, do seu marulhar ou da vida despreocupada e da bonomia dos locais.


Depois de uns dias por lá, pesquisei por um "sofá" disponível na rede "couchsurfing" (surfar no sofá, traduzido à letra), e fui aceite por um rapaz americano. David, que estava a fazer uma investigação sobre a SIDA no país. À data que vos escrevo, já passaram cinco dias desde que cheguei, e posso contar-vos que já conheci os seus vizinhos, os seus amigos, mas não há sinal dele! Anda por Louga no norte do Senegal, a trabalhar no seu projeto. Mas ainda mais esperançoso do que ele me ter respondido positivamente na rede de hospitalidade, foi o facto de ele não estar em Dakar para me receber à data da minha chegada. Em vez disso, depositou a sua plena confiança num desconhecido, e deixou as chaves de casa com a vizinha da frente. Há gente boa no mundo.


Texto a ser incluído no livro de crónicas de viagens do autor, a ser lançado em breve.