quarta-feira, 23 de abril de 2014

Tomar o pequeno-almoço, não...

Misturar-me, envolver-me e fazer parte dos locais, é desde o início da viagem, um dos principais objectivos. Acordei hoje a perguntar-me se devia tomar o pequeno-almoço no hostel. Porque não ir à rua e ver como era a realidade? Decidido! Aliás, tomar o pequeno-almoço, não... “Tomar o Mata-bicho”, como se dizia em terras moçambicanas. 1
 
Na rua recomendaram-me ir até ao Mercado Janeta. Mas às oito da manhã muitas das barracas dos comerciantes estavam ainda fechadas. Enquanto ia perguntando as direcções para a zona da restauração, sorvia à distância os aromas da cozinha local. Cada vez mais perto, cheirava-me a folhas de mandioca a cozinhar, e deixava-me inebriar pelo amendoim a tostar ou pelo côco fresco ralado. Os almoços ali preparavam-se desde cedo, pelas manhãs fora.

Por vezes sentia que ali o tempo biológico era outro. O sol regia o povo de um modo mais explícito e vincado do que aquilo a que estava habituado. Assim que era avistado com os seus raios, com ele pululava a vida da cidade, e quando se baixava sobre a baía de Catembe, os habitantes de Maputo recolhiam a casa.

Num dos poucos quiosques abertos àquela hora, partilhei o balcão da barraca de zinco com um jovem moçambicano. Bem aparentado, de camisa, com óculos e uma grande pasta de trabalho à inspector forense, pousada sobre o balcão. Eram 8h30 da manhã e ele bebia um garrafa de litro de cerveja preta moçambicana da marca Laurentina. O seu nome era Nélson, com cerca de 30 anos e estudara jornalismo. Casado e pai de dois filhos. O seu empregador era uma empresa de minério sediada no Zimbabué mas com um escritório de representação em Moçambique, onde ele desenvolvia a sua actividade profissional durante o dia.

Por bem, quis juntar-me a ele e replicar a sua ementa, enquanto conversávamos sobre a vida. Uma garrafa de litro de Laurentina às oito e trinta, em conjunto com uma familiar sandes mista. Foi o meu pequeno-almoço deste dia, aliás... o meu mata-bicho, em mais um dia no continente africano.




1 Em alguns lugares de Portugal também se usa esta expressão, derivada de matar a fome ou saciar o jejum da noite. 

domingo, 20 de abril de 2014

Palco Inesperado

No seu périplo pelo mundo, Corto rumou a Melbourne, Austrália, terra que à época recebia milhares de imigrantes todos os dias vindos de uma Europa em conflito. Na primeira noite, Corto buscava diversão, entretenimento e copofonia, nesta cidade que se construía no início do século XX. Deambulava com um grupo de jovens que conhecera no Hotel.

Num "pub" nas imediações, acontecia uma noite de música ao vivo com uma banda cujo apenas o nome assustava Corto: "Kill the Queen". O ambiente era soturno, mal iluminado e respirava-se um espírito resistente e anarquista naquele local. No palco tocava um conjunto de "folk" australiano. A sala era pequena e Corto sentia-se observado. As suas vestes de marinheiro, cuidadas e limpas destoavam das roupas do restante público. Calças rasgadas e cabelos compridos por lavar.

A banda fez uma pausa, e com o seu grupo de amigos à volta, no lado da plateia, Corto começava a cantar uma música de folclore celta da Cornualha, terra do seu pai, também ele marinheiro. Às tantas, reuniam-se já cerca de dez pessoas à sua volta. No final aclamaram-no com palmas, e um local de Melbourne, Ryan, muito à vontade no "pub", onde conhecia toda a gente, disse ao ouvido de Corto: "És o próximo a subir ali." - apontando para o palco - "Prepara-te."

Ryan falou com a banda, e de repente ouviu-se: "Sabemos que está aqui um excelente cantor na audiência. Pedimos que venha até ao palco mostrar-nos os seus dotes vocais!"

Corto bebeu um último gole de whisky e subiu até às luzes da ribalta. Perante a audiência não se intimidou e cantou de improviso, velhas canções dos seus antepassados. No final, brindaram-lhe vezes sem conta, até abandonar o "pub".