sexta-feira, 13 de novembro de 2015

De Portugal à Escócia em Carro

“O sonho comanda a vida”
Frase do poema Pedra Filosofal de António Gedeão, pseudónimo de Rómulo de Carvalho.


Num dia decisivo para o futuro político de Portugal, 4 de outubro de 2015, fui votar cinco minutos depois de as urnas abrirem. Tanta questão fiz em exercer o meu direito pois não suportava o governo de coligação que lá estava. Armado em primeiro e melhor eleitor do bairro e arredores, pelas oito e quinze da manhã já votara e estava então no meu carro Skoda Fabia pela estrada fora até à Escócia. Pela frente, aguardavam-me dois mil e oitocentos quilómetros e quase quarenta horas seguidas de condução. Apesar da chuva que se atravessou no caminho e do nevoeiro que encontrei nos montes de Portugal e de Espanha, ia conduzindo com sucesso. A1, A23 e A25 com as suas complicadas portagens automáticas para quem não tem "via verde", Vilar Formoso, Salamanca, Burgos e a região basca, esta última onde a geografia tanto exaure o condutor, não obstante o esplendor natural da paisagem. De repente já estava no sul de França por onde se respirava tranquilidade e melhor clima metereológico e político. Às tantas detinha-me no facto de alguns dos sinais de trânsito estarem tapados com plástico escuro como se estivessem por estrear. Primeiro pensei ser uma brincadeira para contrariar os limites de velocidade mas depois ganhou consistência a tese de que seria devido a obras recentes na via. O sol punha-se quando cruzava esta terra e a restante França, atravessei-a com um firmamento estrelado por cima de mim. Auto-estradas grandes e bem definidas mas despidas de viaturas, tirando alguns camiões. Por vezes alguns carros colavam-se no meu encalço talvez para sermos vários na escuridão, não fosse o diabo tecê-las. Tudo isto me parecia tão animalesco e natural quanto os cardumes de peixes que se juntam uns aos outros no oceano para melhor sobreviverem, ou os pequenos que se encobrem nas caudas ou dorso dos tubarões e baleias. Os camiões e os carros que por vezes via junto a eles assemelhavam-se. Bem, somos animais e não há como escapar por vezes. Para me manter acordado pela madrugada fora liguei os ventiladores no máximo com frio e direcionados para a cara. A rádio estava com volume elevado e a passar notícias, o mais poli-tónica possível, e claro, ia parando nas estações de serviço ou "aire" em Francês para tomar café ou o mais semelhante que eles lá tivessem. A última localidade por onde passei antes da aurora despontar foi Rouen, um conjunto de sarilhos por não ter radial e a auto-estrada desembocar no centro da vila. De lá deriva a seguinte auto-estrada por onde tinha que seguir, até Callais. Numa estação de serviço parei para perguntar direções e de novo tomei café. Aí encaminharam-me de volta à estrada por onde já seguia, e estava certo portanto! Cerca de 300km depois, já imerso na Alta Normandia, os primeiros raios de luz banhavam o asfalto e podia deslindar na paisagem várias turbinas eólicas a girar. Alguns quilómetros adiante, logo depois de uma curva, avistei um grupo de cerca de vinte refugiados na berma da auto-estrada e a pedirem boleia, calculei eu. Talvez fossem também cruzar a estrada para ficarem mais perto de um ponto de acesso escondido ao túnel do comboio. Mas a surpresa, a velocidade da viatura e a impossibilidade de voltar para trás não me permitiram dar-lhes transporte. Isso poderia trazer-me problemas na fronteira também. Sim porque ela ainda existe em plena União Europeia e ainda para mais, quando ela já está claramente definida pela natureza. Uma ilha já tem fronteiras que cheguem!


Callais. Coquelles. Euro-túnel. A bilheteira. Uma nota preta para ter um título flexível pois viajava sem regresso marcado. A alfândega francesa. Tudo OK. Fila para a do Reino Unido e quando chegou a minha vez vieram as perguntas desagradáveis. Entre o funcionário que estava à janela de um posto parecido com o de uma portagem normal, e o vidro desse pequeno cubículo emergiu de um modo pernicioso e repentino um autêntico beef tingido de amarelo no seu cabelo e munido da tal arrogância que os carateriza, não sendo contudo essa a verdade geral, mas este funcionário alfandegário encaixava-se demasiado bem nesse estereótipo. What do you carry in the back? Who are you driving with? Is this your car? When did you buy it? How old are you? What are you going to do in the UK? Are you a musician? Já não podia mais com tanta impertinência, arrogância e desadequação conjunta. Esta besta interpôs-se no trabalho do seu colega para realizar isto? A menos que fosse o jogo da “besta” boa e da “besta” má, pois foi o que pareceu. Por trás desta viagem está um sonho de estudar música e áudio no Reino Unido, por lá existir uma boa oferta de cursos nesta área. Se bem que isso era mais verdade há uns quinze anos atrás. Hoje em dia, em muitos aspetos Portugal ou o ensino à distância têm muitas soluções nesta área. Contudo, um curso acessível ia começar nesse dia, segunda-feira ao fim do dia em Glasgow. A inscrição já tinha sido tratada há dias atrás e só faltava mesmo eu estar lá. Para aproveitar mais o tempo em que lá estava, levava comigo um conjunto de instrumentos para música eletrónica: máquinas de ritmos, sintetizadores, a guitarra e vários discos de vinyl. Com o inquérito para trás e uma raiva desmedida por aquele país estar fora por opção própria, e excessiva, do espaço Shengen, a estrada aguardava-me até onde quisesse ir. Pelas nove da manhã parei para trocar euros por libras e respirar fundo antes de me aventurar mais na condução à esquerda. A propósito, cuja dificuldade é um mito, alimentado pelas autoridades locais que insistem nisto para complicar e diferenciar o seu território e modo de viver dos demais povos europeus. Todos somos iguais contudo e esta não é mais do que uma bem visível face da política, orgulho e da arrogância que carateriza as terras de sua majestade. Há gente boa claro contudo, e tive a felicidade de conhecer pessoas impecáveis por lá. Agora as medidas políticas e o sentimento maioritário no povo são demasiado chauvinistas e incomodativos para com os visitantes.


Ementa de Sobremesas da cadeia de restaurantes Nando's, com inspiração em Portugal.

Pé na estrada pela M20 fora, de Dover até aos subúrbios de Londres onde me iria cruzar com a M25, circular externa da metrópole europeia que hoje alberga quase dez milhões de pessoas e de onde derivam várias estradas para os restantes cantos do país. Ao início da entrada em solo britânico, as torrentes de camiões, a maioria de matrícula estrangeira, já impunham respeito, mas ao entrar na radial, a chusma de carros que se juntaram a mim começava a ser e tornou-se mesmo avassaladora. Não sei se por não ter dormido ou se por ser simplesmente aquela uma situação ridícula, estúpida e incompreensível mas fiquei preso no trânsito desde as onze da manhã de uma segunda-feira até às três da tarde, na radial da maior cidade europeia hoje em dia. E fazerem uma nova estrada? Ou aumentarem, ainda mais, o número de faixas. Assim desconstruia o mito de que todos os britânicos entram muito cedinho no emprego e fazem tudo bem e by the book. Errado! Àquela hora não era possível que fosse diferente. Enquanto o tempo passava e os meus olhos pestanejavam com cada vez mais peso e morosidade, ia também ouvindo o vasto conjunto de boas rádios que pululam o espetro radiofónico local. A Rinse e as suas sessões de grime, rap e dubstep, assim como outras semelhantes que descobri. E só este pequeno detalhe já fazia o meu dia e valer a pena estar ali a viver aquela experiência traumática do trânsito em Londres. Duas horas depois de estar literalmente bloqueado na estrada, optei por uma saída desconhecida, que levava a um centro comercial, ou antes uma área de serviço gigante. O mais interessante é que de lá não poda ir para mais qualquer outro lado pois não havia saída simplesmente! Aquele lugar era contudo nos subúrbios de Londres. Um atalho mais curto ou um caminho sem aquela avalanche de motores estava fora de questão. Só me restava parar, sair, esticar as pernas, e porque já era hora de almoço, comer algo. A comida já se apresentava de má qualidade e pouco mais me restava escolher do que o KFC. Fast-food, fast-food, fast-food. O que mais estava à mão de semear naquele país. Se bem que cada vez mais a cultura gastronómica se compõe de culinárias do mundo o que é divinal claro, mas isso sai sempre caro ao cliente, ainda para mais em Londres onde o custo de vida é inflacionado a cada dia que passa tamanho é o aumento da procura numa urbe onde a oferta de serviços se mantém. A única explicação que encontrei para aquele bloqueio seria o decorrer dos campeonatos de râguebi ali perto de onde me encontrava, percebi em conversa com uma senhora inglesa também ela bloqueada no parque de estacionamento e dentro do seu carro. Pelas 15H estava de novo a circular pela M25 e a entrar na M6, auto-estrada que me levou até ao destino. Não havia que enganar, ou “can't miss it” como dita a user-friendship daquelas bandas, e ainda bem que assim é! O crepúsculo chegou para encobrir a paisagem quando estava a vadear Manchester. Quando cheguei à Escócia já era noite cerrada, e a Glasgow era já onze. Bolas, e a primeira aula já tinha acabado. Fiz o melhor que pude, e podia culpar os ingleses por isso, que foi algo que os escoceses adoraram ouvir!

O curso de música, um sonho, o meu carro, um hotel perto da escola, o frio a chegar, eu instalado naquele quarto que tinha criteriosamente escolhido por telefone antes de ir, voltado a sul com luz e espaçoso, o staff simpático, a vibe musical de Glasgow, a sua familiaridade, e o tamanho razoável para nela habitar e comutar. O metro circular duma cidade algo que não vira antes, matar as saudades da gastronomia portuguesa na cadeia de restaurantes Nando's, o distanciamento tipicamente nórdico dos locais, o bairro onde fiquei, Ibrox, por alguns locais reputado como um subúrbio algo estranho, pois era habitado por muito imigrantes. O hotel que albergava refugiados calculo eu que estivessem a ser integrados na sociedade pelo governo local. O estádio dos Rangers que estava a duzentos metros do hotel e que impunha respeito assim como as suas claques que em dia de jogo espalhavam autocolantes, queimavam caixotes do lixo e obrigavam uma parte do comércio a fechar mais cedo. E o carro cansado da viagem mas agora bem resguardado com um lugar no parque privativo do hotel. Todas estas foram impressões enquanto lá estive. As cinco semanas da minha estadia passaram depressa. Por vezes atingia-me a desrealização do porquê de tudo aquilo. A música, a viagem, o sonho. E ia funcionando, aos poucos. Eu ia explorando as caixas de ritmos que levava comigo e criando batidas, inspirado nos mestres brasileiros, e carregava as canções na internet para partilhar, apenas porque sim. Era o meu sonho. www.soundcloud.com/joaocarlos1

O alojamento estava a tornar-se caro mas os contratos de arrendamento exigem a duração mínima de seis meses o que era inadequado ao que pretendia. Para ter locais a tentar dirimir esta questão aconselhei-me junto da instituição de ensino para juntos encontrarmos solução, sendo que o que sucedeu foi um e-mail enviado para todos os alunos por uma secretária do diretor a perguntar se alguém poderia ceder um sofá até Dezembro a um estudante, para evitar que ele dormisse num parque de estacionamento. Ridículo, jocoso e muito pouco profissional. O ensino era bom, mas as instalações não, e esta fora a gota de água. Como tal, por já ter aprendido bastante para estar satisfeito, ainda para mais depois de um fim-de-semana em Londres num curso intensivo de Ableton Live para DJs, e por não ter pagar mais do que a primeira mensalidade, o destino impelia-me para sul. Quando chegasse ia redigir uma carta de reclamação. A chuva apoderava-se de Glasgow, depois de a ela ter trazido sol, segundo me diziam, pois outubro fora bastante equilibrado em dias estivais e temperaturas tépidas. Com dois dos estudantes combinei ir tocar para a rua, que é um hábito no centro da cidade de Glasgow, e assim foi. Em duas horas, duas libras. Nada mau! Mas o frio já se fazia sentir na Buchanan Street, e Portugal aguardava-me, agora com novos ensinamentos, paisagens vistas, pessoas cruzadas e experiências vividas.

Lisboa chama-me mas a viagem agora será com uma paragem pelo meio.
João A.


Japão é Outra Dimensão

3 de Junho de 2009


Faz hoje cinco dias que cheguei a este universo paralelo. A tecnologia está presente em todos os lados: incontáveis luzes a piscar nas ruas, casas-de-banho high-tech todas automatizadas, feitas de plástico que nem as nave espaciais e com jatos de limpar as nádegas e aquecimento no aro de sentar, luzes rotativas nas entradas dos restaurantes, comboios-bala que atingem os 300 km/h e interligam todo o país, telefones públicos com grandes painéis eletrónicos que indicam as moedas que ainda não foram usadas para realizar a chamada (entre outras informações todavia indecifráveis em japonês), os últimos modelos automóveis japoneses são os carros comuns que se avistam nas ruas, encontram-se facilmente lojas de equipamentos eletrónicos baratos, a internet é omnipresente com as maiores velocidades de upload que já vi... enfim uma lista enorme. A tecnologia faz parte da cultura local e parece comum entre o Japão que conheci até agora.

Depois de ter passado 3 dias em Tokyo, encontro-me neste momento na cidade de Nagoya, um dos principais centros tecnológicos e industriais do país, e base para a fábrica da Toyota. Na Europa, pelos países nos quais tinha até aqui viajado via igrejas em todas as cidades, para nem pensar no incontável número de igrejas que temos em Portugal. Pois bem, aqui no Japão avistam-se templos por toda a parte - templos budistas e os shintuístas, chamados "Shrines". Hoje visitei o Museu da Toyota e o Castelo de Nagoya. Os castelos em Portugal são do tipo geométrico bem recto, rectangular e deo tipo pedra-sobre-pedra. Pois bem, aqui os castelos são sumptuosos e requintados. Têm decorações douradas na fachada, os telhados têm as pontas dobradas, incluindo motivos especiais religiosos nos cantos e possuem vários andares, tomando alturas consideráveis. O tratamento oferecido ao cliente é de todo invulgar. Quando prestam um serviço, fazem-no com servidão, humildade e dedicando toda a atenção ao cliente. A palavra "acusaimass", significado de respeito e boa-educação é repeitda vezes sem conta num dia passado no Japão. Num museu ou numa casa de hóspedes típica japonesa "Ryokan", onde estou agora instalado, mesmo ao passarem ao teu lado ou nas tuas costas, falam algo incluindo o "acusaimass" como sinal de respeito. Tudo é servido com cuidado e toda a atenção é dedicada ao cliente. É um tratamento único, carregado de delicadeza, atenção e humildade. 


Tokyo é uma cidade gigante onde o que salva um estrangeiro viajante ocidental é o metro e as suas indicações em inglês, caso contrário seria bem difícil mover-me na cidade. Chegado ao aeroporto recebi a hospitalidade de um jovem casal que estavam no mesmo caminho que eu, e me ajudaram na linha de comboio até ao hostel. Movidos pela generosidade e hospitalidade, tipicamente japonesas, levaram-me até ao hostel. O hostel disponibilizou as facilidades a que me fui habituando durante a viagem (mais na América do sul) como cozinha comum, internet wireless grátis, mas a diferença de que estava no Japão evidenciou-se, quando o beliche onde ficava a dormir era uma caixa de madeira com uma porta de deslizar. E como esta haviam mais quatro, dispostas 2*2.

A higiene é uma paranóia no Japão. As sanitas têm jatos para limpar o rabo, frequentemente se encontram saboneteiras com álcool para desinfetar as mãos em espaços fechados como museus e estações de metro e comboio, os sapatos ficam sempre à porta do quarto e no hostel onde fiquei em Tokyo na porta da rua(!), são distribuídos pacotes de lenços nas principais ruas de Tokyo (também como estratégia de marketing de algumas lojas), e as máscaras faciais são frequentes, e não são uma precaução adicional devido à tão falada gripe suína - já assim era antes deste surto.

Por vezes vem-me à cabeça o mundo dos anime: o Dragon Ball, a Sailor Moon, o Tsubasa, e o Japão tem de facto bastante da fantasia que se vê nesses desenhos. É uma sociedade diferente, inovada, "certinha", onde quase tudo acontece rapidamente, eficientemente e com pontualidade ao minuto. São algumas visões e opiniões da, provavelmente, mais tecnologicamente avançada sociedade do mundo. Amanhã rumo ao Japão mais rural, nas montanhas - à vila património da humanidade - Shirakawa-go.

Com saudade e um abraço,

João A.



terça-feira, 29 de setembro de 2015

Guiné-Bissau, um país de muitas nações

Não é possível falar da Guiné-Bissau, sem falar da sua diversidade étnica. Se alguns mais desatentos, aos cambiantes do verde ou às configurações das linhas de água na paisagem, falam duma geografia monótona o mesmo não podem dizer da diversidade dos povos que ali habitam. Num pequeno território, que embora conte com mais de quarenta ilhas pouco maior é do que o Alentejo português, coexistem mais de vinte grupos étnicos com costumes, dialectos, religiões e organizações sociais distintas.

No fundo trata-se de povos diversos, de diferentes nações que coexistem há seculos no mesmo chão. Chão ou «tchon» é como designam os próprios o território da sua etnia, a sua terra. Este amor pelo seu chão chega a ser de tal ordem que alguns destes povos não se designam pela sua etnia mas sim pelo lugar de onde é originária a sua família como acontece entre os Manjacos. Nada que seja estranho em agricultores que dependem visceralmente da terra.

Centro de Bissau, 2015.

Tanta diversidade tem seguramente razões históricas. A terra fértil e de abundantes águas com uma orla oceânica extensa recebeu ao longo das épocas invasões de sucessivos povos fugidos à seca e à aridez das zonas mais a Norte, do Império do Gana, depois do Império do Mali que trouxe os Mandigas e por último dos Fulas do Reino de Futa Djallon oriundos do interior do actual território da Guiné-Conacri. Os portugueses chegaram no século XV e estabeleceram-se com fins comerciais na orla costeira penetrando mais tarde ao longo dos rios Cacheu e Buba na avidez de fazerem escravos.

Hoje neste pequeno país da África Ocidental as principais etnias são os Fulas que predominam na zona Oeste na região do Gabu e de Bafatá dedicando-se tradicionalmente à criação de gado e ao comércio, os Balantas que encontram-se em maior número na região Sul, nas zonas de Catió e a Norte, na Região de Oio, em volta de Mansôa, os Papeis a etnia maioritária na região de Bissau, os Manjacos que se concentram na região do Cacheu, os Mandingas com os seus subgrupos de Saracolés, Jacancas, Sôssos e Jaloncas que são o grupo maioritário no Norte e os Bijagós que ocupam as ilhas do Arquipélago do mesmo nome e vivem essencialmente da pesca.

A este mosaico de povos, acrescentou ainda o colonialismo português, os Cabo-Verdianos trazidos como subalternos para servirem na administração colonial ao mesmo tempo que punha etnias contra etnias para melhor oprimir a todas. Talvez muita da instabilidade politica da Guiné-Bissau no pós-independência se possa explicar mais por esta herança nefasta do que pela diversidade étnica. Seja como for a verdade é que não se pode ignorar esta diversidade imensa. É que basta estabelecer uma ligação mais próxima com um guineense para logo ele apresentar a sua etnia. Foi assim com o Francisco que é Papel, com a Sónia que é Bijagós, com o Joaquim que é Fula com o Pansur que é Balanta e com o Américo que é Mandinga.

AP.C

Sónia

E se fosse contigo? E se tivesses saído de casa para comprar tabaco, já noite alta, mesmo sabendo que estás em África e não podes sair sozinho porque o teu Chefe de Missão não permite, por razões de segurança, e entrasses num bar, comprasses o teu Marlboro branco que aqui se vende ao preço da chuva e já de saída escutasses uma rapariga que te chama de uma mesa e te pede um isqueiro e então lhe acendesses o cigarro como cavalheiro branco que és, e depois te sentisses puxado pelo braço, convidado a sentar e te sentasses mesmo. Um pouco de conversa, que mal tem? Para ti que até já estás farto de falar sempre as mesmas conversas com os colegas e os outros estrangeiros nas reuniões e reuniões que se sucedem sem propósito nem préstimo, as mais das vezes só para cumprir agenda e calendário.

Darias uns dedos de conversa não é? Não muitos claro, porque sabes que não podes andar a esta hora na rua, já noite alta, mas trocar o número de telemóvel para ligar mais tarde é rápido. E imagina que estás fascinado por África, que a rapariga te agradou nas feições, no trato, naquela cor preta e imensa de ébano. Regressas ao teu hotel, ninguém deu por nada, vais-te deitar e depois adormeces a pensar nela. Na Sónia que só te disse esse nome.


E se de manhã te tivesses acordado a pensar nela, a pensar em ligar-lhe? Até porque é fim de semana e tens mais uma «liberdadezinha» de te escapares do teu grupo e de te perderes na cidade. E se ligasses e ela atendesse logo? Que sim, que pode ser e marcas para a Império aquela pastelaria fina que fica mesmo em frente ao Palácio do Presidente, sítio mais que seguro porque até estão lá militares das forças de manutenção de paz das Nações Unidas, nos seus carros de combate «fashion», brancos estampados de United Nations e assim o teu chefe nem se importa que andes por ali. E ficas à espera da rapariga, a observar tudo. Os brancos que ocupam a maioria dos lugares, alguns negros, os táxis pintados de branco e azul que vão chegando e descarregam mais estrangeiros porque na Estação das Chuvas é assim, fica difícil deslocarem-se e então para evitar as ruas esburacadas, as poças de água que enchem os buracos, as lamas, as chuvadas torrenciais, os charcos e torrentes que escorrem, tu e os outros que até têm dinheiro, andam mais de táxi.

Foto de autor desconhecido.
E a Sónia chega. Atravessa o salão. Avança para a tua mesa. Linda num decote sensual encimado por aquele sorriso largo e limpidamente branco. E beija-te. Ali em frente de todos como se já fosse tua. Os olhos caem todos em cima de ti. Ou dela? E conversam. «Meu pai era português mas nunca me registou, saiu daqui tinha eu cinco anos. Era militar. A minha mãe era de etnia Papel.» «Nasci aqui em Bissau. Tenho duas irmãs em Portugal.» «Aqui não há trabalho, moro sozinha.» «Gosto de ti.» «Stamos djuntos» (1). Dizes que sim. E ela continua a falar. Uma torrente de estórias sedentas de serem contadas. Toca-te na mão e tu já sabes que os olhos dos brancos e dos negros te iluminam como holofotes. Que fazes?

Sónia continua a falar. Fico lá no bar todas as noites. Onde te pedi o isqueiro. Mas não vou com qualquer um. Sou puta fina. Mas de ti eu gosto. «Stamos djuntos»? E agora que respondes? Não vais responder «No pintcha»(2) porque sentes a cabeça a estalar como se um trovão te tivesse rebentado no mais fundo do cérebro. E ficas quieto. Uma lágrima quer descer do canto do teu olho. Mordes os lábios. Não deixas.

Bissau 3 de Agosto de 2015
AP.C.

(1) Stamos djuntos – expressão de afecto em Kriol da Guiné-Bissau
(2) No pintcha – em frente, avançar em Kriol da Guiné-Bissau


quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Trevo de Cinco Estrelas

Já do espaço aéreo se avista o verde. E isso será o que mais se vê nesta ilha. Verde, verde, verde. E diga-se que há também mais esperança por lá do que por cá mas isso fica para outra crónica. A capital Dublin, batizada com o seu nome original celta como “Dublinia”, tem a dimensão perfeita. Não demasiado grande, com cerca de meio milhão de habitantes e com bons acessos, pouco tráfego e o aeroporto a cerca de 20-30 minutos do centro de autocarro. Surpreenda-se quem esperar que lá haverá metro. Não, ou melhor, sim há mas é de superfície. O "tram" ou LUAS como é chamado. A vida no centro da cidade oscila bastante em torno da Dame Street, que está para a capital da Irlanda, assim como a Rua Augusta está para Lisboa. Muito tráfego de carros, pessoas e bicicletas também, tanto das simples, como das mais recentes versões de "tuk-tuk" a pedais. Mesmo ao lado da Dame Street, recomenda-se a incursão pelo bairro do Temple Bar adentro. E o Temple Bar não é na sua origem um Bar, ao contrário do que alguns tentarão apregoar a troco do lucro dos seus estabelecimentos. Temple Bar é sim uma antiga via de comunicação que foi aberta ao longo do Rio Liffey, e em torno da qual, vários negócios se foram instalando com o passar das décadas e séculos. A palavra Bar no inglês mais arcaico tem o significado também de viela, correnteza, caminho. Recomenda-se a passagem por esta área, que é obrigatória mesmo!

No final da Dame Street, no lado oposto ao Trinity College, encontra o mais famoso “fish&chips” da Irlanda. É ultra-pequeno, informal, mas é tão aclamado e famigerado que à sua entrada há uma tabuleta com todas as celebridades que já lá foram partilhar o pouco oxigénio ali existente no meio de tamanho festim da fritura! A comida é boa, mas para nós portugueses habituados à nossa gastronomia, poderá saber a pouco, e a óleo também. Mas isso fará parte do "fish" e das "chips". Para explorar toda esta área que inclui também o Castelo, recomendo as “Free Street Tours”, que começam junto ao antigo edifício da câmara municipal e junto ao teatro. No final haverá uma "chantagenzinha" "suave” para pedir um donativo, mas será bastante razoável dizer que o pagamento de algo ente 5 ou 10 euros por pessoa é merecido. Em Dublin respira-se história. A cidade foi palco de importantes revoluções como por exemplo a Republicana, liderada por Michael Collins, o IRA e o Sein Feinn. A visita à prisão Kilmainham Gaol é um tempo bem despendido para melhor entender as lutas do passado que levaram à libertação deste povo do jugo britânico.


Os evidentes e repetitivos sinais da ocupação da coroa britânica no norte da ilha. "Não havia necessidade."

Fora da capital há varias atrações. Um carro alugado, boleia ou bicicleta são hipóteses a considerar mas chegar a alguns dos sítios com uma visita programada de autocarro, para quem estiver com pouco tempo, é igualmente uma boa forma de ir. E os autocarros partem da Dame Street, para nossa surpresa! Muito gravita em torno de lá. A rede viária na ilha é muito boa, se bem que algumas estradas junto à costa ou em zonas mais recônditas poderão ser muito estreitas. Uma das principais atrações da ilha está na ponta norte, a Calçada do Gigante, e a coroa britânica não guardou isto para eles por acaso, parece-me! Trata-se de uma formação geológica muito antiga que originou um conjunto de prismas hexagonais de várias dimensões. Reza contudo a lenda que havia ali um gigante por perto, e no outro lado do canal que separa a ilha da Escócia, outro monstro semelhante. Certo dia, o gigante Irlandês caminhou sobre a calçada para ir falar com o seu homólogo escocês, e lá chegando desgarrou-o para um desafio em solo seu, claro. Esperto! Ao retornar a casa, o gigante irlandês confessou à sua mulher o sucedido, pelo que ela preocupadíssima, decidiu dissuadí-lo dessa briga. Como tal, combinou que assim que o gigante da outra margem batesse à porta iria informar que ali não estaria mais ninguém e disfarçá-lo só para jogar pelo seguro. Assim foi: “Truz-truz”, e ela abriu e falou, ao que o gigante retorquiu “Gostaria de falar com o seu marido.” “Mas aqui não está mais ninguém, só o meu bebé”. Contudo o gigante quis vê-lo. Azar dos diabos para o escocês, o gigante da Irlanda estava disfarçado de bebé, ocupando um enorme espaço do quarto. “Mas que grande bebé aí tem minha senhora” afirmou, e logo depois ele retornou à sua Escócia. Assim reza a lenda... embora não abone muito a favor dos irlandeses. Nesta ponta da ilha vale também a pena espreitar Carrick-a-rede, atravessando a ponte de cordas, se bem que haverá muita gente para fazer esta experiência que é encarada como um desafio físico ao ar-livre, por todos literalmente, desde os miúdos até aos mais idosos. As paisagens claro são bonitas, resplandecentes nos seus tons vivos de verde, e abismais e dramáticas nas suas acentuadas falésias de pedra escura. Também na Irlanda do Norte, a paragem em Belfast justifica-se pois a história de conflitos, tensões e escaramuças é ainda sentida. Desde as bandeiras, ou a omnipresença ou o excesso delas, da Union Jack, penduradas nas janelas apenas porque sim, para afirmar a ocupação, até aos extensos e coloridos murais políticos que podem ser vistos numa zona protestante, que aludindo à paz universal, aos líderes mundiais, aos presos políticos da República da Irlanda e de outros, como por exemplo da ETA, são um conjunto significativo de arte visível para toda a cidade. Mas cuidado, se vão numa visita programada de autocarro, devem estar atentos às horas pois ainda são necessários 20 ou 30 minutos para chegar a pé até este lugar desde o centro, ou da Câmara da Cidade até lá. O táxi é outra hipótese também claro. O museu em honra do Titanic é também uma possibilidade mas fica bastante fora de mão do centro, deverá contudo valer a pena.

À exceção das cidades, dos pontos turísticos e outros legados patrimoniais, esta ilha de cinco milhões de habitantes é na sua essência paisagem. São uma imagem de marca da ilha, tanto na Irlanda, República, assim como na Irlanda do Norte, que por ser bastante plana e por lá abundarem lendas celtas e visigodas, por vezes nos dá a impressão ser na sua essência isso: um enorme planalto verde de trevos de quatro folhas, por entre os quais saltitam seres fantásticos como duendes “lepreachons”, reis, rainhas e espadachins imortais. Nas pontas mais a sul e a oeste, encontram paisagens admiráveis junto a Galway, como nos famigerados Cliffs of Moher, mas que apenas aconselho em dias limpos, em que poderá "inclusive" ver estas falésias do mar em barco. Mas fora destas condições deve pensar-se duas vezes. Em Maio e Junho há mais dias de sol e menos precipitação em toda a ilha pelo que é uma boa opção. Perto de Galway também há um pequeno tesouro guardado sob a forma de vila piscatória. E chama-se Kinvarra. A Ericeira da Irlanda, mas sem uma praia... tão boa pelo menos, claro. Não obstante vale claro a pena, para rever o nosso oceano assim como o braço de água que reentra pela pantanosa doca dos barcos adentro, ladeado por um singelo e apreciável castelo.

Em termos de infra-estruturas e organização dos serviços de apoio ao turista, as duas Irlandas estão muito bem organizadas. Ainda quanto à capital Dublin, as “hop-on hop-off tours” continuam a ser uma valia, apesar do risco associado a ir no piso superior ao ar-livre e de repente começar a chover. E a cultura é omnipresente. As encantadoras e singelas canções celtas assim como a literatura são ubíquas por estas terras. Nota final para o país dos trevos: 5 estrelas. Boa viagem!




João

domingo, 20 de setembro de 2015

Novidades do Árctico

Da janela do Fairmont Chateau Hotel vejo o Parlamento ao nascer do sol. Há 11 dias que não vejo noite, a folha de maple na bandeira lá no alto da torre sobressai e apercebo-me, estou no Canadá. Foi tudo tão rápido, tão de repente tão intenso que só agora a observar esta vista percebo, sim, estou no Canadá, sim, estive na Gronelândia. É difícil e longo explicar tudo o que se passou nos últimos dias, foi tanta coisa e tão impactante! Mas vá vou tentar em poucas palavras. Recebi um mail da Lindblad a perguntar quem está disponível para uma Expedição ao Árctico. Eu disse: "Eu estou", pensando que nunca me iam chamar, mas olha 6 dias depois lá estava eu no avião rumo ao Canadá. O mais difícil de tudo foi arranjar roupa para ao Árctico em Agosto em plenos saldos de verão, num país onde a neve nem é bem à séria, corri todos os centros comerciais e mais alguns em Lisboa e arredores, lá consegui compor uma mala mais ou menos e lá fui eu. borradinha de medo... Este salto é bem maior que a minha perna.

Mas afinal o que é tudo isto? A Lindblad faz cruzeiros de expedição ou seja é como se fossemos num barco do Jacqes Cousteau acompanhados do Tio Attenborough. A bordo vão 148 passageiros, 80 crew e uns 20 staff. O staff inclui fotógrafos National Geographic, mergulhadores e naturalistas (biólogos, historiadores, oceanógrafos, arqueólogos, antropólogos etc...). A ideia é explorar um destino tal como se vê nos documentários, ultrapassando todos os limites para produzir uma viagem de sonho.

Ursos polares no Árctico - Foto de Madalena

Desta vez o sonho era o High Arctic e atingir pelo menos os 75º Norte. Mas como em qualquer expedição, imprevistos acontecem e o imprevisto desta vez foi que o mar gelou. Gelou de tal maneira que o ponto de origem e o fim da viagem (Iqaluit), assim como metade do percurso tiveram de ser alterados. O Barco apesar de ser apropriado para navegar no gelo, quebrar plataformas e explorar estas águas não podia ir ao porto de Iqaluit. Então a Lindblad o que é que fez? Podia ter cancelado a viagem pedir desculpas aos hóspedes e dizer que por questões climatéricas a viagem não podia acontecer. Poder, podia mas não era a mesma coisa. Então... Reservou um avião e levou toda a gente para outro aeroporto, charter para todos os hóspedes, e o itinerário mudou mas a viagem continuou. Isto implica uma logística dos diabos, como por exemplo 40 000 dólares extra em combustível, aviões extra, voar a migração a outro destino para tratar dos documentos todos, etc., etc. Mas a expedição não seria cancelada...

Assim sendo voámos de Ottawa para Kangerlussuaq, na Gronelândia, e daí começou a expedição. Viajamos entre os Fiordes, Glaciares e Icebergues da Gronelândia e do Canadá, no Árctico Norte. Visitámos vilas de Inuits (por nós conhecidos como esquimó mas cujo nome correcto deste povo aborígene é Inuit que significa "as pessoas" em Inuktitut), ruínas de vikings e ruínas de acampamentos de verão de Inuits decoradas com ossos de baleias e com muitos vestígios arqueológicos da sua presença no deserto do Ártico. Não foi das viagem com mais vida selvagem (fiquei a aguar umas belas baleias e orcas) mas deu para ver muita coisa... Em cada avistamento era impossível esconder a excitação, a emoção o êxtase, afinal não é todos os dias que se vê uma morsa a apanhar banhos de sol ou uns ursos polares a dormirem a sesta...

Como sempre a expedição foi o máximo, correu tudo bem e felizmente não tive que disparar nenhum tiro! Por questões de segurança o staff (que tenha carta para tal) leva uma carabina e uma pistola, para ocaso de se dar um encontro inesperado com um urso polar. juro que quando tirei a carta de caçador jamais imaginava que essa fosse a razão que me levasse ao Pólo Norte... Ele há coisas nesta vida do arco da velha! Histórias e momentos da viagem há muitos para contar mas desta vez não me vou alongar mais, deixo aqui apenas um pequeno best off destes dias que até hoje acho que não acredito que existiram... OOO ÁRRCCTTIICCCCOOOO ÉÉÉÉÉÉÉÉÉÉÉ LLINNNNDDDOOOOOOO!!!!

sábado, 25 de julho de 2015

A X de Bissau

O espaço de entrada é aberto, sem tecto, pintado em tons laranja e os assentos de madeira também são cobertos por estofos da mesma cor, onde nos podemos sentar e ver as estrelas, uma palmeira  recortada no céu estrelado e um X lá ao fundo depois do balcão. A música é de fusão com os ritmos africanos a dar o mote. Isto cá fora na entrada. Depois passando por um alpendre temos acesso à grande pista de dança, onde a decoração não deixe esquecer que estamos em África. Mas o que dá personalidade à X é mesmo este espaço ao ar livre formando um pátio. Isto e as pessoas que a frequentam. Afinal também são as pessoas que fazem a casa.

Na X conseguimos encontrar a maior colecção de estrangeiros da Guiné-Bissau e talvez de toda a África Ocidental, portugueses e não só, funcionários de embaixadas, empresários de sucesso que agora chegam porque a Guiné-Bissau está na moda, policias que fazem segurança às embaixadas, médicos, pessoal da saúde, comitivas de políticos em digressão, diplomatas, economistas, agentes de desenvolvimento, auditores, cooperantes de todas os matizes, funcionários de ONG's, expatriados e africanistas. Um mundo que nunca se esgota cheio de permanente novidade, a merecer decerto um estudo etnográfico aprofundado.




Os mais variados  organismos internacionais presentes em Bissau, e são muitos, renovam as equipes a todo o momento refrescando-as com gente que chega para render os que partem. Ainda mais agora que a ameaça do Ébola leva as instituições internacionais a reforçarem as suas equipes em permanência na Guiné-Bissau. E claro, as caras repetem-se ou renovam-se a um ritmo impreciso e imprevisível. Só mesmo vendo a cada semana. Há festas de recepção aos que chegam e festas de despedida para os que partem organizadas pelos respectivos colegas. Na X há sempre novidade.

O espaço aberto da entrada facilita a conversa e o convívio. Na X ouvem-se histórias fabulosas. A comunidade portuguesa está lá excelentemente representada e se dominar a língua de Camões, tem mais  de meio caminho andado para fazer amigos na X.  

A X é uma discoteca de brancos embora também lá se possam encontrar muitos negros. Uma discoteca fina onde a clientela principal são os estrangeiros, sobretudo portugueses e lusófonos. Faz lembrar o café do Rick no filme «Casablanca». Estão todos lá.

AP.          

sexta-feira, 17 de julho de 2015

Um Dia em Tetouan

Levantou cedo. Uma janela entreaberta depois de um cigarro tardio deixou entrar logo ao alvorecer, o som da chamada à oração difundido pelos altifalantes da mesquita, acordando assim o desprevenido viajante. Desce agora a Avenida Mohamed V, de mapa na mão, não vá falhar o local onde é necessário voltar à direita para então rumar à Gare «Routière» de Tânger. O trânsito é intenso àquela hora da manhã. Repara como alguns peões se aventuram a atravessar por entre os carros, que teimam em não abrandar mesmo nas passadeiras, mas que acabam por parar no último instante ou contornar os assustados transeuntes, que muitas vezes aguardam pela chegada de companhia que lhes permita avançar em pequeno grupo e cruzar mais facilmente a larga avenida. Não há que enganar. Só pode ser ali. Um imenso edifício rodeado de dezenas de autocarros. Entra e procura as bilheteiras mas não as encontra no meio daquele turbilhão de gentes arrastando sacos e malas. Entre os passageiros que se entrecruzam ouve então pregões gritados compassadamente: «Rabat, Rabat, Rabat», «Chefchaouen, Chefchaouen, Chefchaouen», «Tetouan, Tetouan, Tetouan». «Tetuan?» pergunta-lhe um jovem agarrando-lhe o braço. Responde que sim e rapidamente sente-se conduzido por entre a multidão até uma porta que dá acesso a um pequeno átrio cheio de bilheteiras dotadas de corrimões metálicos destinados a orientar as filas que se deveriam estar a formar mas que estranhamente não existem. Não se orientaria ali com os letreiros escritos em árabe mas também não precisa. O jovem leva-o até um homem sentado num dos corrimões diante de uma bilheteira vazia. Cinco «dirhams» e recebe um pequeno bilhete completamente escrito em árabe. E agora? Os autocarros às dezenas que estão estacionados no exterior não têm placas indicativas, nem números ou sequer letreiros, nisso já tinha reparado. Mas é para estas coisas que servem os guias, mesmo que de ocasião como é o rapaz, que lhe volta a agarrar no braço e o conduz gare fora até um dos muitos autocarros estacionados. No fim a gorjeta claro. Tem de ser. Mas que preciosa tinha sido a ajuda, pensa o viajante enquanto sobe para o autocarro. O veículo não é nada novo, lá isso não. Mas não deixa de ser confortável mesmo com os estofos já gastos e nalguns sítios rasgados. Há ainda muitos lugares vazios. Mas os passageiros vão chegando. Um homem vestido de forma tradicional entra e vai distribuindo uns livrinhos pelos passageiros. A ele não, que se topa à légua que é estrangeiro e seria incapaz de ler o que quer que seja escrito em árabe. Depois é a vez de um vendedor de perfumes e bugigangas. Pincela a mão de cada passageiro com uma espécie de um «baton» que deixa no ar um perfume refinado. Este não discrimina os estrangeiros, pensa enquanto aspira a essência com que também foi presenteado. Em poucos minutos o autocarro enche e arranca. Atravessa primeiro os arredores de Tânger, bairros novos de casas baixas com árvores nas ruas depois a Estação Ferroviária onde faz uma primeira paragem antes de se fazer à estrada. Uma hora é quanto demora a percorrer a distância entre Tânger e Tetouan numa estrada asfaltada e em boas condições. O viajante desfruta da paisagem. A princípio aplanada para depois entrar na montanha verdejante e coberta de árvores. Da janela deixa-se encantar pelos burros albardados que esperam pacientes os donos na beira da estrada, pelos pequenos mercados, por uma bancada que vê cheia de «tadjines», a rainha das peças de cozinha marroquina, em variados tamanhos. Fica com pena de não puder descer e comprar uma de barro simples, tão diferentes das decorativas que se impingem aos turistas nas grandes cidades.

Vista do centro de Tetouan - de Anassbarnichou2 - Licença CC BY-SA 3.0

Tetouan surge ao longe. Casas brancas descendo numa encosta rodeada de nuvens baixas, que a Primavera em Marrocos prega destas partidas, e hoje vai chuviscando de quando, em quando. O seu nome é de origem berbere, essa língua antiga do Norte de África, e significa olhos, olhos de água. A cidade tem origens muito antigas, não muito longe dali, foram encontrados vestígios fenícios e do Império Romano. Ao longo dos tempos muitos povos passaram por Tetouan ou não estivesse tão próxima como está do Estreito de Gibraltar. A cidade funcionou durante séculos como centro de ligação entre o norte de África e o sul da Península Ibérica que estiveram politicamente unificados até à ao final da Reconquista com a queda de Granada em 1492. Depois da Reconquista muitos dos expatriados refugiaram-se em Tetouan tendo a ultima vaga de muçulmanos vindos de Espanha chegado no ano de 1609 expulsos em massa pela Inquisição. Também expulsas pela Inquisição ali chegaram importantes comunidades judias no século XV provenientes de toda a Península Ibérica. A cidade manteve sempre intensas trocas económicas e culturais com o sul de Espanha e foi protectorado Espanhol de 1912 até 1959 altura em que foi finalmente integrada no Reino de Marrocos. Pensa nisto o viajante quando se aproxima e começa a entrar nas primeiras ruas da cidade, ruas modernas ladeando o rio que corre num vale verdejante situado aos pés da montanha, coroada desde a meia encosta, pelo vasto casario largo e branco da cidade antiga. O terminal rodoviário de Tetouan, onde desce, é um espaço organizado e de planta moderna. Um edifício não muito diferente de um terminal rodoviário de qualquer pequena cidade na Europa. Surpreende-se com os letreiros bilingues, escritos a verde sobre um fundo branco em árabe e em francês. Repara na Sala de Orações, mas não consegue ver como ela é por dentro, isolada que está dos olhares dos curiosos. Mesmo assim, quando a porta se abre para dar entrada a um crente em viagem, repara que no chão existem espaços desenhados e delimitados para a oração. Outra surpresa, são as casas de banho. Com apenas uma torneira perto do chão, um balde e uma bacia sanitária à turca fixa ao solo. E não fossem estes pormenores, ou as gentes que por ali circulam, e o viajante poderia sem dificuldade achar que estava na Europa. Mas não está. Disso se vai aperceber rapidamente quando depois de esperar na fila de táxis consegue entrar num e não é capaz de se fazer entender com o taxista. Nem francês, nem inglês. Talvez tivesse sido mais bem-sucedido se tivesse utilizado o Espanhol ou o Português mas tal não lhe ocorreu na hora e na atrapalhação. Afinal na cidade falou-se espanhol até aos anos sessenta e isso claro deixou marcas. Faz uma segunda tentativa que resulta igual. Só à terceira tentativa se faz entender e combina o preço da viagem, como todos os roteiros feitos para turista aconselham, roteiros esses, onde aprendeu também a distinguir os «petit táxi», das viagens urbanas dos «grand táxi», que fazem os percursos mais longos entre cidades. Combinado o preço, apenas 10 «dirhams» o equivalente a um euro, arranca rumo ao centro da cidade. Percorridos apenas algumas centenas de metros o simpático taxista acena a uma mulher e pára. Uma amiga? Uma cliente? Fica sem saber. É hábito em Marrocos os táxis recolherem vários passageiros durante o percurso. A mulher entra, cumprimenta e para surpresa do viajante fala um francês perfeito. Logo lhe dá as Boas Vindas a Tetouan e a Marrocos e enquanto conversa traduz ao jovem taxista o que vai sabendo. Não é a primeira vez que uma coisa assim acontece. Se os jovens em geral dificilmente entendem uma frase em francês, as pessoas de mais idade e de mais elevada escolaridade falam-no com fluência. As línguas oficiais de Marrocos são o Árabe numa versão própria e o Berbere minoritário em vários dialectos. O Francês é ainda bastante usado nas instituições governamentais e no mundo dos negócios embora esteja em declínio como o viajante irá perceber mais adiante quando visitar uma livraria repleta de títulos escritos em árabe e se deparar com uma única e exígua prateleira com não mais de trinta títulos em francês, quase todos clássicos.

No caminho, sempre a subir, ainda consegue ver uma manifestação de sindicalistas com uma pequena faixa desfraldada junto à estrada mas fica sem saber o que reivindicam. Marrocos é uma monarquia onde alguns se queixam por vezes de ataques à liberdade de expressão e a questão nunca resolvida do Saara Ocidental ocupado permanece como uma nódoa sobre o país. O táxi deixa-o mesmo no centro da cidade e ruma à Medina, a cidade antiga, classificada como Património Mundial da Humanidade pela UNESCO. Antes passa por uma larga avenida pedonal que vai desembocar na Praça Hassan II onde se encontra um dos acessos à Medina. A avenida está repleta de lojas modernas e cafés com esplanadas. Os edifícios são altos e muito bem cuidados alguns com marcas de um estilo muito semelhante aos que se encontram em todo o sul de Espanha. A Praça Hassan II é dos anos oitenta e nela se encontra o Palácio Real. Sabe o viajante que a construção desta praça foi feita sobre os escombros da antiga Praça Feddán, local de reunião emblemático da cidade, e que o imponente Palácio Real ocupa o espaço onde estava o Alto Comissariado Espanhol porque a História tem destas coisas e o monarca quis ao mesmo tempo apagar os traços do anterior poder colonial e algumas veleidades autonómicas que a região sempre teve. Aqui ao contrário do que viu em Tânger os turistas são poucos e o assédio de improvisados guias é nenhum. Por isso dá uma volta descansado pelo mercado, o «souk», de uma das laterais e aproveita para comprar um saquinho de morangos não sem antes provar dois que lhe foram oferecidos pelo simpático vendedor. Estavam lavados sim, e mergulhados em água numa bacia imensa. E inflige assim aquela regra básica que houvera aprendido: Cozido ou descascado, mas dai não lhe virá nenhum problema e os morangos eram realmente magníficos e vieram mesmo a calhar antes de se aventurar na Medina.

A Medina ou cidade antiga a que se acede a partir desta praça é um vasto e labiríntico espaço de casas baixas, imaculadamente brancas e ruelas estreitas cercado por uma muralha com cerca de cinco quilómetros de extensão e apenas sete portas de entrada. Aventura-se o viajante a entrar por ali adentro sabendo de antemão que se irá perder mas não se preocupa agora com isso. Avança nas ruelas que se bifurcam sinuosas e espreita as lojas, perde-se na imensidão dos produtos expostos, desfruta dos odores e das cores das frutas frescas, dos legumes, das comidas, ofusca-se com o brilho dos metais e das joias expostas, com os objectos de couro e madeira e vai reparando nas portas verdes, nos ladrilhos policromos, nas coberturas colocadas sobre as ruelas que cortam o sol, nos artífices trabalhando nas soleiras das portas dos seus estabelecimentos, nos arcos das casas que atravessam por cima das ruas e formam aqui e ali pequenos túneis que tem de transpor para chegar a novas ruelas que outra vez se bifurcam e derivam a todo o momento noutras sempre iguais e sempre diferentes, algumas com degraus, outras com fontes, abrindo-se em novos recantos a cada esquina. E com isto logo se perde e atravessa sem perceber o «Mellah», o antigo bairro judeu onde as ruas são rectilíneas e as pequenas praças quadrangulares e descobre ainda, quase por acaso, uma pequena mesquita isto enquanto deambula por entre o bulício de vendedores e habitantes na sua maioria vestidos com a tradicional «djellaba», uma espécie de robe largo que chega até aos pés com mangas compridas e um capucho largo que termina numa ponta em bico. E de tanto ver era certo e sabido que se perderia. Admite agora que deveria ter seguido o conselho, que não se deveria ter aventurado na Medina de Tetouan sem a ajuda dum guia. Agora só perguntando. É o que faz pois não tem outro remédio. Depois de muitos enganos e perguntas lá consegue encontrar a saída e chega cansado mas feliz à grande praça de onde tinha saído horas antes. Nada melhor que descansar antes do regresso a Tânger, onde se hospedou e tem cama e mesa à espera. Escolhe um café com esplanada, pede um chá de menta e fica ali a olhar para quem passa. Já não estranha que no café só estejam homens porque a isso já se habituou. Nem estranha as diferenças nos vestuários das gentes que atravessam a rua. Porque se muitos usam o vestuário tradicional, outros vestem-se como em qualquer cidade da Europa. E se é verdade que a maioria das mulheres cobre os cabelos com um véu também é verdade que outras, sobretudo jovens, ostentam livres o seu cabelo ao vento.

Antes de partir ainda vai entrar numa livraria. Não é grande, mas é bonita com estantes em madeira antiga. Deve ser sem dúvida do período colonial. Perde-se entre os milhares de títulos expostos todos em árabe. Rebusca, vasculha, olha e não encontra nada em francês, espanhol ou inglês. A livreira que o tinha saudado à entrada depois do seu sonoro «Bonjour» é uma mulher de meia-idade de cabelo coberto por um véu e um vestido que lhe cobre todo o corpo e os braços, como os que a maioria das mulheres marroquinas usam. Aproxima-se dela e procura por títulos em francês. A mulher indica-lhe num francês perfeitíssimo uma pequena prateleira numa lateral próxima da entrada. Não mais que trinta livros. São quase todos clássicos franceses. Repara no «Le Petit Prince» que já tinha visto numa magnífica versão em árabe, mas de autores marroquinos só encontra um livro de poesia de um autor radicado na Bélgica e um estudo sobre as migrações no Mediterrâneo. E fica preocupado com o futuro da língua de Molière naquela parte do mundo. Ainda encontra um jornal bilingue em árabe e francês mas pouco mais. Do passado colonial, tirando a arquitectura, fica com a impressão de não restar muito hoje em Tetouan. E já dentro do táxi, de regresso, enquanto se despede da cidade, vai meditando na riqueza que o encontro de povos e culturas criou nesta cidade que foi durante séculos o entreposto entre o norte de África e a Europa. A Pomba Branca, como é conhecida a cidade, resplandece ao fim dia na montanha, enquanto um fugaz Arco-íris se acende no horizonte.

AP

quinta-feira, 9 de julho de 2015

Vídeos de Viagem


Alentejo
 
O Alentejo na Primavera. Bonito mas desertificado.


Andaluzia

A Andaluzia com os seus encantos, as serras e as planícies, Marinaleda terra de luta, Cadiz e a sua baía, Málaga, Torremolinos com as suas festas e Sevilha a grande. O trabalho e o campo, o que ficou dos muçulmanos. Tudo e a sua bandeira verde e branca. 

Tânger
 
Tânger em Marrocos. Uma cidade do norte de África.


António Pereira



sexta-feira, 19 de junho de 2015

Despertar no Bairro

Famoso pela vida boémia e algumas casas de fado, mas também pelos relatos de violência, excessos noturnos ou a prostituição de outrora, o Bairro Alto não costuma chegar até nós pelos melhores motivos. Mas nessas mesmas ruas habita uma comunidade de várias idades, origens e profissões que todos os dias se levanta e se deita, num dos locais onde a noite lisboeta acontece. Num passeio matinal, fomos conhecer algumas pessoas deste bairro.

"Para mim, o mais difícil era adormecer. Acordar sempre foi um sossego."
Sr. Agostinho – Padaria “Os Bolos”

Subindo a Rua do Norte às 7H30 da manhã, o comércio está ainda fechado. Cruzo-me com o Sr. Humberto do talho, que distribui peças de carne pelas casas do bairro. O camião do lixo termina a recolha. Bárbara, caminhando misteriosa e de poucas palavras, chega a casa depois de uma noite de trabalho, enquanto escreve mensagens no telemóvel. Bato à porta d'Os Bolos, nome pelo qual já conhecia esta padaria no topo da Rua da Rosa. Está aberta todo o dia e toda a noite. O Sr. Agostinho, ribatejano, trabalhador de camisa de cavas branca e braços tatuados conta-nos que faz pão de dia e de noite, há 33 anos. "Hoje rendi de madrugada e só saio daqui ao final da tarde." Diz orgulhoso de si mesmo. Durante 15 anos viveu no prédio em frente à padaria e confessa: "Para mim, o mais difícil era adormecer. Acordar sempre foi um sossego. Mesmo nos tempos e que havia muita prostituição, o barulho era muito pouco durante a noite." A segurança nos últimos 10 anos tem sido também um problema, indica: "Hoje já não há respeito pela Polícia. Não têm medo deles. À noite já vi de tudo. Até já fizeram graffities aqui à entrada da padaria." Por estes motivos, mostra-se favorável à vídeo-vigilância e opina que o uso desta tecnologia pode melhorar a segurança de todos. Hoje é o seu dia de aniversário mas como prenda, oferece-me uma merenda folhada, ali mesmo cozinhada por ela, na panificadora. As ruas do Bairro durante esta manhã fresca de Outono continuam a padecer de uma estranha normalidade, para quem possa estar mais habituado à copofonia noturna.


Tempos de Outrora

“Antigamente as manhãs tinham outra graça! Acordava com os jornaleiros, os vendedores de rua dos figos da capinha rota e as lavandeiras de Caneças que todos os dias nos limpavam a roupa. Ah, e os ardinas! Por vezes até via jornais a voarem das mãos deles para as varandas do terceiro andar.” Dona Maria da Pensão Atalaia.

Dona Maria Dominguez, proprietária da Pensão Atalaia costuma trabalhar durante a noite. Sai do serviço às 9H30 da manhã e a esta hora dirige-se à leitaria de esquina na Rua da Atalaia para comer algo antes de dormir. Com o vagar da idade vejo-a entrar apoiada no balanço da bengala. Senta-se e depois de introduzida na conversa pelo dono da leitaria, partilha esperançada o seu saber acumulado em 70 anos de vida e de trabalho no Bairro Alto. “Antigamente as manhãs tinham outra graça! Acordava com os jornaleiros, os vendedores de rua dos figos da capinha rota e as lavandeiras de Caneças que todos os dias nos limpavam a roupa. Ah, e os ardinas! Por vezes até via jornais a voarem das mãos deles para as varandas do terceiro andar.” Relembra com saudades de outrora. “As manhãs de hoje são mais calmas” aponta, em oposição à vida do antigamente. Mãe, avó e bisavó, Dona Maria está preocupada com o futuro das próximas gerações. Da janela de sua casa ou da receção da sua pensão espreita pela janela para ver o que se passa nas ruas do Bairro Alto durante a noite. “As raparigas agora são as piores! Bebem mais do que os rapazes.” Fala do seu neto como exemplo, jovem de 20 anos que várias vezes depois de beber um copo na noite, prefere dormir em casa da avó, em vez de conduzir embriagado até à Margem Sul do Tejo, onde reside. Mas conta também que já ela mesma sofreu situações incómodas de assédio por parte de jovens embriagados nas noitadas, ao entrar e sair do seu trabalho, a Pensão. Também aponta a alimentação dos dias de hoje como um problema que pode afetar os jovens. “Já não comem a comida feita com a dedicação de uma avó ou de uma mãe, apenas querem hambúrgueres. Assim os jovens não crescem da mesma forma”. No Bairro Alto contudo pode encontrar uma série de bons locais para comer refeições que o irão satisfazer. Por exemplo na área da gastronomia tradicional recomenda-se o Pap'Açorda ou o Bota Alta, na comida oriental o Ghandi Palace ou o Calcutá, na world-fusion o Sul, ou a quem preferir os pratos japoneses indica-se o Novo Bonsai. Os habitantes locais sentem melhorias na qualidade do seu descanso desde que os bares passaram a fechar às 2H da manhã. Mais recentemente, às 3H nas noites de sábado e domingo. Apesar de tudo, adormecer continua difícil e esse é um ponto de acordo entre os locais com os quais conversámos. A conversa acabou hospitaleira, como não podia deixar de ser com a dona de uma Pensão, e a Dona Maria ofereceu-me um café, antes de seguir caminho.

"Bom Dia!" de Franck Grenier - Licença CC BY-ND 2.0


Ruas Limpas

Os riscos nas paredes podem ser piores mas os graffities bem feitos até acho bem.” Sr. José, varredor, funcionário da higiene urbana.

Durante as noites ébrias deste bairro da cidade são dispensados milhares de copos de plástico. José é um dos trabalhadores que os varre durante o dia. Jovem de 30 anos que vem todos os dias da Damaia para o Bairro Alto. Aqui trabalha há um ano e desde que começou, já nota diferenças no volume de sujidade que encontra pela frente em todas as suas jornadas. “Desde há poucas semanas quando proibiram as lojas de conveniência, já não se veem garrafas de vidro no chão das ruas. Assim e melhor, agora são só copos de plástico.” Entra no emprego às 7H e varre as ruas durante a manhã com outros dois colegas, desde o topo do Bairro Alto, junto à Rua de São Pedro de Alcântara até ao Largo do Camões. Os graffities são habitualmente considerados pelas autoridades um problema de poluição visual, mas quando questionado sobre este tema, José mostra-se à vontade: “Os riscos nas paredes podem ser piores mas os graffities bem feitos até acho bem.” Aprova os murais que conhece na Damaia na Cova da Moura, junto a onde mora. “Essas pinturas trazem cor à área.” Deixa a sugestão que talvez pudessem fazer o mesmo no Bairro Alto: legalizar algumas paredes onde possam seja possível pintar esses murais. Nas paredes de várias ruas do Bairro Alto, nota-se o trabalho das brigadas anti-graffity que a Câmara Municipal de Lisboa – CML tem financiado. Além de várias paredes sem pinturas e tags, esta última a assinatura de cada pessoas que pinta murais, é patente o trabalho que as brigadas têm levado a cabo. Até se veem limpas, as lajes e pedras que revestem as portas de rua dos antigos prédios do Bairro Alto. Os posters de evento, festivais e marcas que habitualmente invadem as fachadas dos prédios são cada vez menos, indica José. Agora existem placards próprios colocados pela CML que têm reduzido a poluição visual. Para saber mais sobre a sua profissão, José sugere-me falar com Rute, também varredora de rua. Ela é jovem e pratica o ofício há pouco tempo. Confessa que é agradável para ela trabalhar naquele bairro. Sobre a abastada quantidade de copos que todos os dias encontra pela frente, desabafa: “Quanto mais lixo houver, melhor para mim... mais horas extra recebo!”.


O Bairro

Nessa altura, apesar da má fama, os clientes eram mais educados. Dantes a segurança era melhor.” Fernando, co-fundador do estabelecimento “Pérola do Oriente”.

Atualmente apenas duas mercearias continuam em funcionamento no bairro. Já a Dona Maria contava saudosista que vários estabelecimentos de comércio tradicional fecharam nas últimas décadas, dando lugar a casas de diversão noturna. Em funcionamento há 28 anos, a “Pérola do Oriente” na Rua da Rosa é um dos locais onde ainda podemos comprar produtos frescos durante o dia. Estabelecimento de dois irmãos, e mais conhecido por isso por “Os Irmãos”, divide-se entre um café e uma mercearia. O café, já preenchido de afluência pelas oito da manhã, é separado por vidros interiores da mercearia, onde com mais calma se pode conversar com um dos empreendedores. Fernando conta que ali está naquela área da cidade há 28 anos e tem assistido a muitas mudanças. Quando questionado sobre a insegurança no Bairro Alto, dá-nos o exemplo dos anos 80 de quando aquelas ruas eram muito rotinadas por prostitutas, durante a noite. “Nessa altura, apesar da má fama, os clientes eram mais educados. Dantes a segurança era melhor.” Ali trabalha durante o dia: entre às 7H e sai às 20H e assim evita as horas notívagas de maior azáfama. A meio da manhã pelas 10H30 ficam para trás as ruas do Bairro Alto. Várias lojas de roupa, calçado e discos estão ainda por abrir, à tarde. Ao caminhar diante o jornal “A Bola” os repórteres discutem a atualidade desportiva e as suas tarefas vespertinas. Dos restaurantes, já de portas entreabertas, emanam inebriantes os aromas da gastronomia portuguesa, que serão depois servidos ao almoço.

Área histórica da capital portuguesa, o Bairro Alto é frequentado de noite e habitado de dia. Aqui se encontra a boémia noturna mas também uma vida própria diurna, recheada de histórias e vontade de as partilhar.


João A.

domingo, 3 de maio de 2015

Festa berbere

O luar iluminava a nossa marcha silenciosa pelo apertado caminho, de argila seca e de pedras soltas. Sentiam-se os aromas de ervas de montanha, queimadas do fim do Verão, e tudo o que se ouvia era o gorgolejar do pequeno riacho do vale e um grilo aqui e acolá. De tempos a tempos parávamos, para distinguir algum outro som, mas nada, ainda não se ouvia mais nada.
Segundo Ahmed, as quatro ou cinco aldeias berberes ali perto eram a única presença humana nos cumes desta zona do Atlas marroquino, acessíveis apenas por caminhos de cabras. Era uma delas que procurávamos.

Horas antes, o jovem pastor berbere passara com o seu rebanho pelo lugar onde havíamos montado as tendas, no sopé de uma das montanhas, perto de uma cascata. Talvez porque lhe despertámos curiosidade – afinal, éramos estrangeiros – não resistiu a convidar-nos para o casamento que nessa noite se celebrava num dos povoados.



Ahmed não tinha a certeza sobre qual das aldeias estava em festa, mas ao fim de umas horas de caminhada no escuro, escutámos por fim os sons alegres de celebração. Seguimo-los. Pouco depois, um pequeno conjunto de casas claras com luz de fogo dentro rompeu a escuridão, ao mesmo tempo que chegava até nós a melodia de um coro de vozes masculinas e o ritmo de tambores, cada vez mais próximos.

Ao entrar na aldeia, vimos um círculo de homens apoiados nos ombros uns dos outros à volta de cinco ou seis mulheres de várias idades. Dançavam e cantavam uma melopeia repetitiva, de túnica e chapéu muçulmano, alguns de turbante. Mergulháramos noutra realidade, ou tempo. Era difícil de conceber que ainda houvesse um mundo de asfalto e postes elétricos lá fora.
Uma luz fraca mas quente dourava a festa, no espaço comum da aldeia. A agitação dos homens, que iam girando num círculo coeso e percutindo nos tambores de pele de camelo, contrastava com as figuras estáticas das mulheres, sentadas no centro, vestidas de cores claras e de olhar firme. Uma delas tinha uma renda branca a cobrir-lhe a cara, talvez a noiva.
Nós, convidados acidentais, éramos alvo de olhares discretos e curiosos, mas o ritual seguiu como se não estivéssemos ali.
Num impulso, misturámo-nos. Entrámos para a roda dos homens, os nossos ombros nos deles, girando e imitando-os nos cantos. O ambiente tornou-se mais sorridente.

Pouco depois, alguns de fora do círculo conduziram-nos, gentis, para dentro de uma das casas brancas e simples, iluminada por velas que traziam nas mãos e mostravam os tapetes de cores vivas, a única mobília. Sentámo-nos em roda e veio chá e mel das montanhas. Falavam-nos em berbere e respondíamos em francês simples com duas ou três palavras de árabe. Não nos compreendíamos exatamente, mas ninguém pareceu importar-se. O ritual continuava lá fora, desta vez reservado aos participantes originais.

Já noite densa e decidimos voltar ao acampamento, havia que encontrar o caminho de volta. Entrámos de novo no escuro, e o coro e os tambores foram ficando para trás, muito para trás, assim como os nossos anfitriões, o mais recente casal berbere das montanhas do Atlas marroquino.