Famoso pela vida boémia e algumas casas de fado, mas também pelos relatos de violência, excessos noturnos ou a
prostituição de outrora, o Bairro Alto não costuma chegar até nós pelos melhores motivos. Mas nessas mesmas ruas habita uma comunidade de
várias idades, origens e profissões que todos os dias se levanta e se
deita, num dos locais onde a noite lisboeta acontece. Num passeio
matinal, fomos conhecer algumas pessoas deste bairro.
"Para mim, o mais difícil era adormecer. Acordar sempre foi um sossego."
Sr. Agostinho – Padaria “Os Bolos”
Sr. Agostinho – Padaria “Os Bolos”
Subindo a Rua do Norte às
7H30 da manhã, o comércio está ainda fechado. Cruzo-me com o Sr.
Humberto do talho, que distribui peças de carne pelas casas do
bairro. O camião do lixo termina a recolha. Bárbara, caminhando
misteriosa e de poucas palavras, chega a casa depois de uma noite de
trabalho, enquanto escreve mensagens no telemóvel. Bato à porta
d'Os Bolos, nome pelo qual já conhecia esta padaria no topo da Rua
da Rosa. Está aberta todo o dia e toda a noite. O Sr. Agostinho,
ribatejano, trabalhador de camisa de cavas branca e braços tatuados
conta-nos que faz pão de dia e de noite, há 33 anos. "Hoje
rendi de madrugada e só saio daqui ao final da tarde." Diz
orgulhoso de si mesmo. Durante 15 anos viveu no prédio em frente à
padaria e confessa: "Para mim, o mais difícil era adormecer.
Acordar sempre foi um sossego. Mesmo nos tempos e que havia muita
prostituição, o barulho era muito pouco durante a noite." A
segurança nos últimos 10 anos tem sido também um problema, indica:
"Hoje já não há respeito pela Polícia. Não têm medo deles.
À noite já vi de tudo. Até já fizeram graffities
aqui à
entrada da padaria." Por estes motivos, mostra-se favorável à
vídeo-vigilância e opina que o uso desta tecnologia pode melhorar a
segurança de todos. Hoje é o seu dia de aniversário mas como
prenda, oferece-me uma merenda folhada, ali mesmo cozinhada por ela,
na panificadora. As ruas do Bairro durante esta manhã fresca de
Outono continuam a padecer de uma estranha normalidade, para quem
possa estar mais habituado à copofonia noturna.
Tempos
de Outrora
“Antigamente as manhãs tinham outra graça! Acordava com os jornaleiros, os vendedores de rua dos figos da capinha rota e as lavandeiras de Caneças que todos os dias nos limpavam a roupa. Ah, e os ardinas! Por vezes até via jornais a voarem das mãos deles para as varandas do terceiro andar.” Dona Maria da Pensão Atalaia.
Dona
Maria Dominguez, proprietária
da Pensão Atalaia costuma trabalhar
durante a noite. Sai do serviço às 9H30 da manhã e a esta hora
dirige-se à leitaria de
esquina na Rua da Atalaia para comer algo antes de dormir. Com o
vagar da idade vejo-a entrar apoiada no balanço da bengala. Senta-se
e depois de introduzida na conversa pelo dono da leitaria, partilha
esperançada o seu saber acumulado em 70 anos de vida e de trabalho
no Bairro Alto. “Antigamente as manhãs tinham outra graça!
Acordava com os jornaleiros, os vendedores de rua dos figos da
capinha rota e as lavandeiras de Caneças que todos os dias nos
limpavam a roupa. Ah, e os ardinas! Por vezes até via jornais a
voarem das mãos deles para as varandas do terceiro andar.”
Relembra com saudades de outrora. “As manhãs de hoje são mais
calmas” aponta, em oposição à vida do antigamente. Mãe,
avó e bisavó, Dona Maria está preocupada com o futuro das próximas
gerações. Da janela de sua casa ou da receção da sua pensão
espreita pela janela para ver o que se passa nas ruas do Bairro Alto
durante a noite. “As raparigas agora são as piores! Bebem mais do
que os rapazes.” Fala do seu neto como exemplo, jovem de 20 anos
que várias vezes depois de beber um copo na noite, prefere dormir em
casa da avó, em vez de conduzir embriagado até à Margem Sul do
Tejo, onde reside. Mas conta também que já ela mesma sofreu
situações incómodas de assédio por parte de jovens embriagados
nas noitadas, ao entrar e sair do seu trabalho, a Pensão. Também
aponta a alimentação dos dias de hoje como um problema que pode
afetar os jovens. “Já não comem a comida feita com a dedicação
de uma avó ou de uma mãe, apenas
querem hambúrgueres. Assim os jovens não crescem da mesma forma”.
No Bairro Alto contudo pode encontrar uma série de bons locais para
comer refeições que o irão
satisfazer. Por exemplo na
área da gastronomia
tradicional recomenda-se o
Pap'Açorda ou o Bota Alta, na comida oriental o Ghandi Palace ou o
Calcutá, na world-fusion
o Sul, ou a quem preferir os pratos japoneses indica-se o Novo
Bonsai. Os habitantes locais sentem melhorias na qualidade do seu
descanso desde que os bares passaram a fechar às 2H da manhã. Mais
recentemente, às 3H nas noites de sábado e domingo. Apesar de tudo,
adormecer continua difícil e esse é um ponto de acordo entre os
locais com os quais conversámos. A conversa acabou hospitaleira,
como não podia deixar de ser com a dona de uma Pensão, e a Dona
Maria ofereceu-me um café, antes de seguir caminho.
"Bom Dia!" de Franck Grenier - Licença CC BY-ND 2.0 |
Ruas
Limpas
“Os
riscos nas paredes podem ser piores mas os graffities
bem feitos até acho bem.” Sr.
José, varredor, funcionário da higiene urbana.
Durante
as noites ébrias deste bairro da cidade são dispensados milhares de
copos de plástico. José é um dos trabalhadores que os varre
durante o dia. Jovem de 30 anos que vem todos os dias da Damaia para
o Bairro Alto. Aqui trabalha há um ano e desde que começou, já
nota diferenças no volume de sujidade que encontra pela frente em
todas as suas jornadas. “Desde há poucas semanas quando proibiram
as lojas de conveniência, já não se veem garrafas de vidro no chão
das ruas. Assim e melhor, agora são só copos de plástico.” Entra
no emprego às 7H e varre as ruas durante a manhã com outros dois
colegas, desde o topo do Bairro Alto, junto à Rua de São Pedro de
Alcântara até ao Largo do Camões. Os graffities
são habitualmente considerados pelas autoridades um problema de
poluição visual, mas quando questionado sobre este tema, José
mostra-se à vontade: “Os riscos nas paredes podem ser piores mas
os graffities bem
feitos até acho bem.” Aprova os murais que conhece na Damaia na
Cova da Moura, junto a onde mora. “Essas
pinturas trazem cor à área.”
Deixa a sugestão que talvez pudessem fazer o mesmo no Bairro Alto:
legalizar algumas paredes onde possam seja
possível pintar esses
murais. Nas paredes de várias
ruas do Bairro Alto, nota-se o trabalho das brigadas anti-graffity
que a Câmara Municipal de
Lisboa – CML tem financiado. Além de várias paredes sem pinturas
e tags, esta última a
assinatura de cada pessoas que pinta murais, é patente o trabalho
que as brigadas têm levado a cabo. Até se veem limpas, as lajes e
pedras que revestem as portas de rua dos antigos prédios do Bairro
Alto. Os posters de evento, festivais e marcas que habitualmente
invadem as fachadas dos prédios são cada vez menos, indica José.
Agora existem placards
próprios colocados pela CML que têm reduzido a poluição visual.
Para saber mais sobre a sua profissão, José sugere-me falar com
Rute, também varredora de rua. Ela é jovem e pratica o ofício há
pouco tempo. Confessa que é agradável para ela trabalhar naquele
bairro. Sobre a abastada quantidade de copos que todos os dias
encontra pela frente, desabafa: “Quanto mais lixo houver, melhor
para mim... mais horas extra recebo!”.
O
Bairro
“Nessa
altura, apesar da má fama, os clientes eram mais educados. Dantes a
segurança era melhor.” Fernando, co-fundador do estabelecimento
“Pérola do Oriente”.
Atualmente
apenas duas mercearias continuam em
funcionamento no bairro. Já
a Dona Maria contava saudosista que vários estabelecimentos de
comércio tradicional fecharam nas últimas décadas, dando lugar a
casas de diversão noturna. Em funcionamento há 28 anos, a “Pérola
do Oriente” na Rua da Rosa é um dos locais onde ainda podemos
comprar produtos frescos
durante o dia. Estabelecimento de dois irmãos, e mais conhecido por
isso por “Os Irmãos”, divide-se entre um café e uma mercearia.
O café, já preenchido de afluência pelas oito da manhã, é
separado por vidros interiores da mercearia, onde com mais calma se
pode conversar com um dos empreendedores. Fernando conta que ali está
naquela área da cidade há 28 anos e tem assistido a muitas
mudanças. Quando questionado sobre a insegurança no Bairro Alto,
dá-nos o exemplo dos anos 80 de quando aquelas ruas eram muito
rotinadas por prostitutas, durante a noite. “Nessa altura, apesar
da má fama, os clientes eram mais educados. Dantes a segurança era
melhor.” Ali trabalha durante o dia: entre às 7H e sai às 20H e
assim evita as horas notívagas de maior azáfama.
A
meio da manhã pelas 10H30 ficam para trás as ruas do Bairro Alto.
Várias lojas de roupa, calçado e
discos estão ainda por
abrir, à tarde. Ao
caminhar diante o jornal “A Bola” os repórteres discutem a
atualidade desportiva e as suas tarefas vespertinas. Dos
restaurantes, já de portas entreabertas, emanam inebriantes os
aromas da gastronomia portuguesa, que serão depois servidos ao
almoço.
Área
histórica da capital portuguesa, o Bairro Alto é frequentado de
noite e habitado de dia. Aqui se encontra a boémia noturna mas
também uma vida própria diurna, recheada de histórias e vontade de
as partilhar.
João A.