sábado, 30 de março de 2019

Pela estrada fora no Alentejo.



    
Desliga-se o motor. Só o silêncio em redor, quebrado aqui e ali pelo canto dos pássaros, o zumbir dos insectos, o voo rasante das andorinhas, que fizeram ninhos numa velha casa, ainda branca, mas abandonada deve fazer muitos anos. Mantos imprecisos, de pequenas flores, matizes de roxo, amarelo e branco estendem-se, a se perderem de vista, em todas as direcções, no arredondado verde da planície.

Um velho monte resiste abandonado lá ao fundo. Duas casas, com paredes ainda debruadas num azul esvaído e restos do telhado, a azinheira enorme ainda dando a sua redonda sombra aos escombros e rastos que as flores desenharam e descem até quase à estrada.

Algumas árvores, não muitas, searas de papoilas rubras dispersas e malmequeres brancos. E uma leve brisa, que anima de quando em quando, num movimento suave, as ervas baixas e a água do charco que bordeja a estrada. As rãs, muito próximas, marcam o compasso da música que soa por entre o silêncio inteiro.


Nada nem ninguém ao redor. Ao longe, um antigo dólmen, marca milenar de pedra, deixada ali a fazer História, com a cobertura já descaída sobre um pilar tombado. Mais perto na beira da estrada, um marco alto, com a imagem de um autocarro inscrita a negro num branco que persiste ainda, erguido e solitário também, assinala o que foi a paragem de uma carreira rural que há muito deixou de passar. Apenas um passo e salta repentino um coelho, que se perde ziguezagueante, em corrida solta na paisagem, calando as rãs por um momento.

Fica? Parte? Olha ao redor num círculo completo. Espera ainda um pouco. Liga a ignição, acelera a mota e arranca fazendo-se à estrada.     

António Pereira

sábado, 19 de janeiro de 2019

Sociedade sem Dinheiro

Uma da madrugada no aeroporto de Copenhaga, capital da Dinamarca, país portuário e fronteiriço entre a Alemanha, motor económico da Europa e a Suécia, país nórdico, pejado de natureza. O voo da Lufthansa aterrou já tarde devido a um atraso em Frankfurt, nova capital financeira da União depois do para mim já tão certo Brexit. E neste quadro, de repente dei por mim num átrio amplo e vasto de centenas de metros de comprimento por uns dez metros de altura de pé direito, de onde saíam comboios para a Suécia, assim como o metro para o centro da cidade e, deduzi eu, táxis, para onde bem quisesse. Vontade não me faltava para ir dar um salto até à Suécia, recanto onírico do mundo, no meu imaginário pelo menos, mas não era esse o plano. O metro para o centro já estava fechado e eu também já desejoso de chegar ao hostel, optei pelo táxi.

Como o país não aderiu à zona euro, a sua moeda Coroa Dinamarquesa ainda se mantinha, pensava eu… Então procurei a máquina de levantar dinheiro pelo tal átrio, onde via todos os tipos de automatismos que substituíam o ser humano àquela hora da noite. Assim alguém poderia dormir melhor ou estar desempregado também, dependendo do ponto de vista. Vi máquinas de bilhetes do metro, do comboio, umas do sistema ferroviário dinamarquês, outras do sueco, Também máquinas para comprar comida, até os jornais. Mas achar a tão habitual máquina de tirar dinheiro em papel, em Portugal pelo menos tão ubíqua, e há que reconhecer a funcionalidade dessa rede, por lá não encontrava, o que me intrigava… Até porque se a rede portuguesa era reputada como tão boa, talvez a dinamarquesa ficasse um pouco atrás… justificava-me no meu pensamento, refastelando-me também de certa forma. Mas pesquisei por uns bons dez minutos, fazendo figura de louco percorrendo aquele átrio de chegadas vazio de madrugada, com um mochilão às costas e uma mochila ao peito, estilo koala. Até que enfim encontrei o ATM mais escondido do mundo. Bem no cantinho do átrio, por baixo de umas escadas rolantes, junto a uma enorme parede de vidro com dez metros de altura, já numa área de pouca passagem e com um sem-abrido a dormir ao lado. Afinal também há aqui, pensei. A máquina e o sem-abrigo, infelizmente, claro. Mas como o país é seguro não estranhei a sua presença mas estranho era estar a máquina estar tão deslocada.


Nota que de nada me serviu nesta viagem...


















Depois de levantar umas notas, abri a porta e saí à rua, onde o frio me punha em sentido e energizando-me para esta viagem. Na fila do táxi estava uma família com dois filhos, ele de pele branca e ela de cor negra. O tom é indiferente, claro, e sempre foi, mas neste momento chamou-me à atenção por os pais deles serem também caucasianos. Achei lindo, incrível e mega avançado do ponto de vista social. Qual seria a probabilidade de me cruzar com este cenário socio-familiar, àquela hora da noite, naquele lugar, caso fosse raro? Praticamente nenhuma, pelo que assumi ser de facto a sociedade local muito muito muito avançada, mesmo. Um lugar onde a responsabilidade social é incorporada no elemento nuclear familiar, com compromissos mais longos que a nossa vida, como o de educar alguém. A Dinamarca apresentava-se como um lugar onde somos, acima de tudo, o que temos por baixo da pele. Então esta família na conversa, e esperando alguém, insistiu para passar à frente deles pelo que acabei por entrar no primeiro táxi. O carro era amplo, requintado e espaçoso, uma banheira autêntica, o que para táxi não é habitual. Aquele parecia ser o melhor táxi em que já viajei. Com um ecrã rectangular que ocupava uma grande parte do painel frontal, de onde um mapa GPS era desenhado indicando ao taxista o caminho, de um modo futurista, enquanto as suas rodas deslizavam por uma ampla auto-estrada de quatro faixas, tão estranhamente vazias àquela hora, que nos levava até ao centro da cidade. No início meti conversa com o taxista, que percebi ser imigrante pela forma de falar dele. É facto que o inglês é amplamente falado por lá, e ele manifestava dificuldade. Mas não querendo ele falar muito, eu também não continuei, até sentindo alguma antipatia inicial dele, desfeita também quando saímos da tal estrada e ele me indicou alguns pontos turísticos da cidade que novamente me parecia abandonada.

O destino era um hostel que encontrara na internet, no site hostelworld. E quando lá chegámos, ao ver  o valor da viagem no ecrã, passei-lhe a nota do banco de trás para o da frente, ao que ele se recusou terminantemente receber acenando-me com a mão - “No, no, no.” Estarrecido, indaguei o porquê. Ele disse-me que ali na Dinamarca só aceitavam cartões bancários e que não se usava mais dinheiro impresso. A princípio ainda achei ser um esquema do taxista para não me dar troco, porque, confesso estava a dar-lhe uma nota de bastante valor, pois a máquina só deu dessas. E já tendo visto várias situações no comércio, de fugirem às notas altas, ainda insisti um pouco que não tinha cartões comigo. Então com um frio a rondar os zero graus no exterior do carro, pedi um minuto ao taxista e saí a caminhar até ao hostel, onde procurei confirmar se assim era que se pagava um táxi do aeroporto, correndo o risco de fazer figura de desconfiado ou de turistão recém-chegado a uma utópica sociedade sem dinheiro. E assim era, confirmou-me o rapaz da recepção, que o dinheiro impresso praticamente fora tirado de circulação neste país. Apenas era usado de um modo residual. O hostel também não aceitou notas o que comprovava que ter um cartão era uma obrigatoriedade necessária para viver lá.

No dia seguinte caminhava por uma sociedade que me provocava uma sensação de utopia, despertando atenção, interesse e adrenalina em mim, ou uma versão economico-social da hormona talvez. Enquanto caminhava por ruas pejadas de bicicletas, sendo esta a cidade do mundo onde mais há neste momento, e onde o metro circulava sem maquinista, onde nas estações não havia bilheteiras com humanos, tudo era maquinal e sem torniquetes de acesso, onde o dinheiro era apenas de plástico, e onde molhava de modo ligeiro o cabelo e a roupa com os pingos de chuva do céu fosco e nublado tão típico da Europa mais setentrional, reflectia naquele modelo de sociedade. Seria este o melhor? Será que o capitalismo, a democracia e a república serão mesmo os menos maus ou que já temos vergonha de mexer no dinheiro, de o ver e cheirar, de o mostrar, de o usar, ou porque a preguiça e o chato em que a política se foi tornando para o público, não temos vontade de levantar da cadeira e ir até às mesas de voto. Assim como se tornou off-topic debater os prós e os contras de sermos mandados por reis e rainhas ao invés de votarmos com regularidade, munidos de livre arbítrio na pessoa que melhor achamos para liderar uma sociedade, ainda que os primeiros tenham a primazia da educação para este fim toldada e com conhecimento transgeracional acumulado. E qual a perda de privacidade numa sociedade em que todas as nossas compras ficam assim registadas associadas a um qualquer cartão, de um qualquer banco, de um qualquer dono accionista maioritário, de um qualquer país, que pode fazer o que entender com esses dados? A Dinamarca fazia-me pensar nisto tudo enquanto por lá andarilhava – numa nova visão do futuro, achando que este modelo se vai replicar daqui a uns anos ao restante globo.

Abraços e boas viagens !

Vosso,
João

sexta-feira, 20 de julho de 2018

Documentário - Os Meus Descobrimentos - Volta ao Mundo em Couchsurfing

A volta ao mundo em couchsurfing que tive a oportunidade de realizar, para além de ser contada num livro também é apresentada sob a forma de um documentário que já está disponível em quatro partes no leitor abaixo, tal como no canal de youtube >> youtube.com/heinzaguiar e no site osmeusdescobrimentos.com

No filme podem conhecer os países, cidades e lugares por onde passei. Também entrevistei pessoas, filmei grupos de música e dança e contei para a câmara o que estava a viver em viagem.
Na primeira parte, há filmagens de Marrocos, Mauritânia, Senegal, África do Sul, Moçambique e Lesoto. Na segunda, do Brasil. Na terceira, do Peru, Bolívia, Chile, Argentina, Uruguai e Japão. E na quarta da Alemanha, Holanda, Bélgica, França de comboio em interrail, e de Barcelona a Lisboa em bicicleta.

Agradeço que partilhem e façam like nos vídeos.
Espero que gostem !






domingo, 29 de abril de 2018

Na Estrada Atlântica

Da Praia do Norte na Nazaré até à Praia do Osso da Baleia, pela Estrada Atlântica, são quase oitenta quilómetros que se percorrem junto ao mar. Grande parte da estrada é bordejada por ciclovias que integram uma das maiores redes de Portugal, atravessando os concelhos da Marinha Grande, Alcobaça, Pombal e Nazaré. As praias sucedem-se uma após outra. Falca, Légua, Vale Furado, Paredes da Vitória, Polvoeira, Águas de Madeiro, Praia do Ouro, S. Pedro de Moel, Vieira de Leiria, Pedrogão e tantas outras menos conhecidas, mas não menos surpreendentes. Um paraíso natural onde o pinhal abraçava as praias estendendo-se até ao mar.

Depois do grande incêndio de 15 de Outubro que consumiu a quase totalidade do Pinhal de Leiria, a Estrada Atlântica é agora um lugar que se atravessa entre pinheiros queimados e grandes aglomerados de madeira cortada e empilhada junto ao alcatrão. O canto dos pássaros e o murmúrio do vento de outrora foi substituído pelo matraquear incessante das motosserras e pela azáfama dos camiões transportando a madeira queimada. O verde agora é pouco. Entre a Praia do Ouro e S. Pedro de Moel uma zona de vegetação mais rasteira escapou e em volta da Praia do Osso da Baleia também ainda verdeja um pequeno espaço, mas quase nada restou do imenso manto verde mandado plantar pelos primeiros reis de Portugal.
  
Nalguns troços percebe-se que foi possível suster o fogo e impedi-lo de atravessar a estrada, noutros tudo em volta está queimado. Ardeu quase tudo. Na Légua o fogo chegou às casas, no Vale Furado entra-se na povoação passando entre pilhas de madeira queimada. Na Praia de Paredes o fogo desceu pela encosta até ao mar só poupando as casas e o parque de campismo. Se entrarmos para o interior, na direcção de Pataias ou da Burinhosa, o mesmo cenário. São quilómetros e quilómetros de terra queimada. Na Praia de Vieira de Leiria tudo se consumiu em chamas até junto à sua rotunda principal. A estrada que liga a praia a Vieira de Leiria é agora uma recta que se faz por entre altos pinheiros queimados que ainda ninguém cortou.


Mais para norte no sentido de Pedrogão o panorama não muda. Na Lagoa da Ervideira junto à mata do Urso, dos dois quilómetros de margem só foi poupada uma pequena faixa de pinheiros do lado do parque das merendas e do bar. O resto ardeu. Fica-se com a ideia, olhando as dunas a partir da estrada, que em muitos lugares o fogo só se extinguiu na areia da praia. Quando já não existia mais nada para arder.

Prosseguindo no sentido da Praia do Osso da Baleia, continua a mesma paisagem, de pinhal queimado. Ainda se podem ver placas de sinalização e informativas calcinadas na beira da estrada. Da rotunda da baleia até Alhais, repetem-se as pilhas de madeira queimada cortada e amontoada ao lado da estrada e os pinheiros calcinados à espera de serem abatidos. Só já próximo da praia aparece outra vez o verde. Do imponente Pinhal de Leiria ou do Rei, como lhe chamavam os naturais daqui, com origens na Idade Média quase nada ficou. Arderam cerca de nove mil hectares de floresta e estima-se que mais de sete milhões de árvores. Mas a natureza é generosa. A Primavera trouxe as primeiras flores a despontar entre as árvores queimadas, enormes fileiras de papoilas rubras, flores silvestres de muitos matizes adornam outra vez a estrada. Os ciclistas também já rolam pelas ciclovias e o mar, bravio de imensas ondas brancas a desfazerem-se no areal, esse esteve sempre lá.         

António Pereira

quinta-feira, 29 de março de 2018

O Velho e o Bar

"Só uma coisa é mais preciosa do que o teu tempo:
com quem o gastas." Leo Cristopher



Cabo Verde foi o lugar para onde viajei pela primeira vez fora dos confortos ocidentais da Europa e da América do Norte. Essa viagem foi com um grupo de jovens com quem fiz um périplo pelas várias ilhas deste arquipélago da Macaronésia. Era ainda miúdo.

E num salão da cidade do Mindelo o tempo lentamente tardava em parar. Eu era quase tão novo quanto os meus sonhos de criança e naqueles instantes o calor abatia-se-nos pelo suor da pele e pela humidade que escorria nas paredes do café.

À mesa falávamos de como era bom estar na ilha mas reparei que ao fundo da sala e de frente para mim, estava o único caucasiano que vira naqueles dias pela ilha de São Vicente. Era um homem já encurvado pela modorra do tempo e do clima, bem como pela idade e pela garrafa de gin que estava sempre ao alcance da sua mão. E ele estava embriagado.





















Ao vê-lo, só me lembrava de todas as imagens que desenhava na mente em miúdo enquanto estudava em casa e lia na escola o clássico "O Velho e o Mar" do Hemingway. A minha professora de português de então, a Maria Teresa Maia Gonzalez numa das suas entretidas e cativantes aulas, já nos ensinara que ele viveu em Cuba. E anos depois, este homem no bar foi o mais próximo que alguma vez encontrei dele. Como um sósia. E por instantes imaginava-o, tal como ao Ernest, mergulhado numa estufa de calor lentificador mas ao invés de Cuba, em Cabo Verde.

O tempo parava para ver, imaginar e viajar, mesmo já fora de portas. E muito provavelmente foi ali que me apaixonei por viajar, permitir-me sentar nos lugares e observá-los enquanto o tempo se dilatava.


João Aguiar

quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

Locais de Venda - Os Meus Descobrimentos



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