Ali onde as areias
acabavam e o mar começava, era a nossa estrada. Alan, Jasmine e eu
seguíamos no opel, cheios de vontade de sul. Rumávamos entre
fronteiras, a do deserto e a do oceano, a “terra de ninguém”
amena que transformava aquela parte da travessia do Sahara numa
agradável viagem de alguns milhares de quilómetros.
O Sahara Ocidental tem
ares de terra ocupada. Barreiras policiais maroquinas frequentes
investigam quem cruza as estradas desérticas. As poucas construções
de estilo marroquino que vão aparecendo, com muita distância de
intervalo, são recentes, não fosse esta uma terra de tendas.
Não é um panorama
monótono, e o deserto desdobra-se em mil paisagens, ora de pedras e
rochas, ora de dunas de areia, ora cascalho interrompido por alguns
arbustos que reclamavam sobrevivência. Ao fundo, uma manada de
dromedários deambula buscando o raro verde.
De repente, a estrada
oferece uma possibilidade que não apenas o sul: uma pista arenosa
para a direita, para o mar.
- É a direcção da
costa, vamos?
Disse um de nós, falando
pela vontade que todos tínhamos de ver água a perder de vista.
Poucos quilómetros
depois e uns vultos ao fundo já interrompiam o horizonte amarelado,
tremelicante com o calor que irradiava do chão. Eram objectos
insólitos em tal contexto de secura. Barcos, com ar de já ter
cumprido missão, gozando agora de reforma terrestre com vista para o
mar.
A visão do grande azul
do cimo da falésia aliviava a aridez de onde provínhamos. O vento
soprava fraco, era o único som para além das ondas lá em baixo.
Ali nem gaivotas piavam. Não se avistava ninguém.
Um caminho descia até
à beira-mar. Decidimos percorrê-lo, haveria uma praia com certeza.
As escarpas estéreis
eram feitas de rochas sedimentares, arenosas, de cores claras e
formas erodidas. Lá em baixo, no fim do caminho, surge um conjunto
de casas de cor cinza, à beira de uma praia serena. Ainda não se via vivalma.
Ao chegar à localidade
sem nome, confirmámos a sua natureza fantasma. Todas as habitações
estavam vazias, portas e janelas abertas para um interior sombrio de
usos pouco recentes. Que motivos para aquele abandono?
Já passeávamos entre
o casario quando ouvimos sinais de vida. Uma presença rompia o vazio
inquientante. Uma voz solitária juntou-se ao som do avançar lento
de alguém. Apareceu finalmente o seu corpo. Um velho meio coberto de
trapos, de face escura e endurecida, enrugada pelo tempo e pelo sol,
de andar incerto, jeitos imprevisíveis.
O homem não nos olhou
com olhos de ver, embora viesse na nossa direcção. Falava como se
nada dissesse e a ninguém se dirigisse, numa língua que não
compreendíamos. Era o imperador daquela desolação, réstia
solitária da presença humana que ali houve. Há quanto tempo ali
estava, aquilo que dizia, como gastava os seus dias, um mistério.
Desapareceu a deambular
por entre as residências de ninguém, trocando palavras com a
ausência de lógica. A sua voz desfez-se gradualmente. Regressara à condição
de inexistência para o mundo dos vivos, fantasma solitário daquele
ponto esquecido do Sahara.