A cidade de Segou há
muito não conhecia dias tão calmos. A rebelião no Mali afugentou
os turistas, que aqui chegavam atraídos pela arquitectura de terra e
madeira em redor de um dos portos fluviais mais antigos do
continente. Outros faziam escala a caminho do deserto, ou vinham
assistir a um dos muitos festivais de música nas margens do grande
Níger. Muitos dos locais que fugiram à ameaça da invasão rebelde,
vinda do norte, ainda não haviam regressado.
Alguns restaurantes
fecharam portas. Os empregados dos hotéis ocupavam-se de conversas
para passar o tempo enquanto os ventiladores refrescavam o vazio. Nas
recepções dos hotéis diziam-se os preços antigos, para
apequenarem os de pós-conflito: aliciar o pouco turista era agora
uma questão de sobrevivência.
Entrei no restaurante
de um hotel sem clientes, onde três empregados tropeçaram uns nos
outros para trazer um menu.
Depois de escolher,
olhei uma segunda vez à volta. Uma outra porta levava a um jardim,
com mesas e cadeiras à sombra de uma grande palhota redonda. Parecia
mais agradável comer ali. Ao sair para o jardim, vi que afinal
estava acompanhado, uma das mesas estava ocupada.
Era um homem de origem
europeia, de cabelos brancos e barba comprida, envolto no fumo do
cigarro que ia chupando lentamente. Estava
sentado em frente ao ecran do seu portátil antiquado, da garrafa de
xarope de menta e da cerveja Castel. Perguntei-me que faria ali o
outro único estrangeiro que vira até agora. Seria um escritor?
Alguém à procura de não ser encontrado que acabou por ficar?
Parecia ter uns 70 e muitos anos, e o sotaque do seu francês quando
pediu o almoço ao empregado denunciou-o.
- És espanhol?
Perguntei.
- Sim. Quer dizer...
Catalão.
Veio-me à cabeça o
recente apoio popular à independência da região e comentei-o na
expectativa de encontrar um adepto do separatismo.
O velho, com gestos de
desagrado, esclareceu.
- Todo esse movimento
independentista... Manipulado por elites! A luta pela independência
tornou-se um capricho da burguesia. Rodopiam à volta do dinheiro e
do poder, são independentistas financeiros. A ideologia e identidade
falam baixinho perante o dinheiro... E tu, vens da América Latina?
Sorri e disse ser
português. Perguntei o que o trazia a Segou.
- Com esta idade, já
não tenho ar de quem trabalha não é?
Respondeu, divertido.
- Vivo cá. Fugi do
barulho. Não do barulho da cidade... Nem sequer da sociedade! Mas do
barulho ideológico.
Fez uma pausa, olhos
fixos em algo que não estava ali.
- Voltei da América
Latina para Espanha, há muitos anos, para me juntar aos comunistas
contra Franco. Mas depressa percebi que os meus camaradas tinham mais
sede de outras coisas, e nos anos que se seguiram à democracia,
vi-os enriquecer e afeiçoar-se a altos postos nas hierarquias.
Um colibri, verde
metálico a brilhar ao sol, de cauda negra comprida cuja ponta se
separava em dois semi-arcos, sugava flores vermelho vivo ali ao nosso
lado. Ambos o contemplámos.
- Cansei-me de
incoerências, falsas revoluções. Apeteceu-me desandar e conhecer
mundo. Foi nessa altura que comecei a vir para África. Viajei o
continente inteiro.
O tom de desilusão
transformou-se em entusiasmo quando descreveu montanhas e desertos
distantes, vastas florestas e povos diferentes. Recomendou-me sítios,
avisou-me de outros.
- Finalmente cheguei a
Segou. Senti tranquilidade aqui. E há pouco barulho. Então fiquei.
E como te chamas?
- Sou Fernando e tu?
- Eu sou Pedro Ros.
Ros, em Catalão, é vermelho.
Trocámos de número
para um dia beber uma cerveja ao lado do Níger. Ele estaria lá, com
todo o tempo do mundo, horas repartidas entre a escrita, a mulher e o
pequeno filho – o primeiro, aos 70 anos, e o repouso.
Ros deu um último golo
na sua cerveja.
- Foi um prazer, amigo.
Está na hora de cumprir uma velha tradição que nunca perdi: a
sesta.
Despedimo-nos e o velho
retirou-se a passos lentos. Ia apanhar um dos táxi-moto que
descansavam na praça em frente. Os rapazes que os conduziam
conheciam bem onde ele morava.