sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Ros, o vermelho


A cidade de Segou há muito não conhecia dias tão calmos. A rebelião no Mali afugentou os turistas, que aqui chegavam atraídos pela arquitectura de terra e madeira em redor de um dos portos fluviais mais antigos do continente. Outros faziam escala a caminho do deserto, ou vinham assistir a um dos muitos festivais de música nas margens do grande Níger. Muitos dos locais que fugiram à ameaça da invasão rebelde, vinda do norte, ainda não haviam regressado.

Alguns restaurantes fecharam portas. Os empregados dos hotéis ocupavam-se de conversas para passar o tempo enquanto os ventiladores refrescavam o vazio. Nas recepções dos hotéis diziam-se os preços antigos, para apequenarem os de pós-conflito: aliciar o pouco turista era agora uma questão de sobrevivência.
Entrei no restaurante de um hotel sem clientes, onde três empregados tropeçaram uns nos outros para trazer um menu.
Depois de escolher, olhei uma segunda vez à volta. Uma outra porta levava a um jardim, com mesas e cadeiras à sombra de uma grande palhota redonda. Parecia mais agradável comer ali. Ao sair para o jardim, vi que afinal estava acompanhado, uma das mesas estava ocupada.

Era um homem de origem europeia, de cabelos brancos e barba comprida, envolto no fumo do cigarro que ia chupando lentamente. Estava sentado em frente ao ecran do seu portátil antiquado, da garrafa de xarope de menta e da cerveja Castel. Perguntei-me que faria ali o outro único estrangeiro que vira até agora. Seria um escritor? Alguém à procura de não ser encontrado que acabou por ficar? Parecia ter uns 70 e muitos anos, e o sotaque do seu francês quando pediu o almoço ao empregado denunciou-o.

- És espanhol?
Perguntei.
- Sim. Quer dizer... Catalão.
Veio-me à cabeça o recente apoio popular à independência da região e comentei-o na expectativa de encontrar um adepto do separatismo.
O velho, com gestos de desagrado, esclareceu.
- Todo esse movimento independentista... Manipulado por elites! A luta pela independência tornou-se um capricho da burguesia. Rodopiam à volta do dinheiro e do poder, são independentistas financeiros. A ideologia e identidade falam baixinho perante o dinheiro... E tu, vens da América Latina?
Sorri e disse ser português. Perguntei o que o trazia a Segou.
- Com esta idade, já não tenho ar de quem trabalha não é?
Respondeu, divertido.
- Vivo cá. Fugi do barulho. Não do barulho da cidade... Nem sequer da sociedade! Mas do barulho ideológico.
Fez uma pausa, olhos fixos em algo que não estava ali.
- Voltei da América Latina para Espanha, há muitos anos, para me juntar aos comunistas contra Franco. Mas depressa percebi que os meus camaradas tinham mais sede de outras coisas, e nos anos que se seguiram à democracia, vi-os enriquecer e afeiçoar-se a altos postos nas hierarquias.

Um colibri, verde metálico a brilhar ao sol, de cauda negra comprida cuja ponta se separava em dois semi-arcos, sugava flores vermelho vivo ali ao nosso lado. Ambos o contemplámos.

- Cansei-me de incoerências, falsas revoluções. Apeteceu-me desandar e conhecer mundo. Foi nessa altura que comecei a vir para África. Viajei o continente inteiro.
O tom de desilusão transformou-se em entusiasmo quando descreveu montanhas e desertos distantes, vastas florestas e povos diferentes. Recomendou-me sítios, avisou-me de outros.
- Finalmente cheguei a Segou. Senti tranquilidade aqui. E há pouco barulho. Então fiquei.
E como te chamas?
- Sou Fernando e tu?
- Eu sou Pedro Ros. Ros, em Catalão, é vermelho.
Trocámos de número para um dia beber uma cerveja ao lado do Níger. Ele estaria lá, com todo o tempo do mundo, horas repartidas entre a escrita, a mulher e o pequeno filho – o primeiro, aos 70 anos, e o repouso.
Ros deu um último golo na sua cerveja.
- Foi um prazer, amigo. Está na hora de cumprir uma velha tradição que nunca perdi: a sesta.

Despedimo-nos e o velho retirou-se a passos lentos. Ia apanhar um dos táxi-moto que descansavam na praça em frente. Os rapazes que os conduziam conheciam bem onde ele morava.