Já
passava das cinco da manhã quando entreabri os olhos e esbracejei do
colchão para fora até alcançar o despertador digital e desligar o
som. “Vamos! Já passa da hora.” Dentro de poucos minutos
estávamos no carro e a caminho de Madrid. Íamos os dois celebrar o
14 de Fevereiro mas também visitar o meu irmão que agora está por
lá a viver. Banhado pela aurora matutina, o montado alentejano
prolongava-se belo e familiar, desde a nossa margem sul do Tejo até
para lá de Elvas. A estrada seguia sempre calma, naquele sábado de
manhã. A fronteira já não existia e ainda me admirava como se não
o soubesse já de antemão. Confesso que receava algum motivo
prepotente para pararem o meu carro. Se a polícia em Portugal é
desmedida e desproporcional, nunca se sabe como será a do país
vizinho. São cada vez mais síncronas, e as diferenças entre os
dois povos não são assim tantas. Deve destacar-se que as
auto-estradas por lá não são pagas, e isso, numa viagem já faz a
diferença. Já passava das duas da tarde na hora local, quando
transitávamos num dos bairros mais chiques de Madrid, ou como se diz
por lá, um dos mais “pirros”. As ruas, as fachadas e as pessoas
estavam bem arranjadas. Impressionou-me que os peões assumiam o
protagonismo da estrada, dado os passeios serem largos, por haver
apenas um sentido automóvel, e mais importante ainda, devido aos
veículos só poderem circular a 30 quilómetros por hora, máximo.
Zona de velocidade reduzida. O meu irmão aguardava uma leva de
instrumentos musicais que lhe prometera levar. Em complemento ao seu
trabalho integral, dedicava-se à música, a sua paixão verdadeira e
de longa data. À hora de almoço, era impossível não petiscarmos
algo onde ele trabalhava. Tempo apenas para ir até ao nosso Hotel,
ali ao lado sito no mesmo bairro, fazer o “check-in” e regressar.
Depois de petiscarmos uma tarte de bacalhau acompanhada de uma
“caña”, e rematar com um pastel de Nata, Lisboa estava
definitivamente para trás e doravante aguardava-nos Madrid. Ao
caminhar até à estação de metro mais próxima, “Vergara” o
vento frio e cortante já se fazia sentir no rosto. O “barbeiro”
como se diz no norte e se lembrava a Sofia. A cidade situa-se num
planalto, sensivelmente na latitude do Porto e está rodeada no
horizonte de montanhas repicadas de neve. As ruas mesmo frias
conquistavam-me grandes e organizadas que eram. Assim como o Metro,
abrangente e funcional, não obstante as estações e as carruagens
serem mais espartanas e pragmáticas do que as da nossa cidade natal.
A estação que mais nos deixa no centro chama-se “Sol”, local das famigeradas e revolucionárias acampadas de 2010 e 2011, réplica das do Rossio em Lisboa, refira-se também. Ali, mais do que noutro lugar da urbe, sentia-se o bulício citadino de uma cidade de seis milhões, também em processo de auto-análise política e social. Várias vozes se faziam reclamar na via pública. Por exemplo os movimentos depois assumidos como partidos “Podemos”, ou a sua contra-versão “Ciudadanos”, etc. Mas o Carnaval ainda ludibriava muito as atenções de causas políticas. Desde as “Puertas del Sol” caminhámos ao todo por duas ou três horas. “Calle Mayor” abaixo, até à respetiva “Plaza Mayor”, enclaustrada por firmes fachadas vermelhas, o tom nacional, e que nos eram recordação de um imaginário construído de imagens televisivas e de vetustas memórias. Como este fim-de-semana era também de Carnaval, julgámos nós que por isso, havia vários artistas locais que tentavam pregar sustos aos mais incautos. No centro da Plaza Mayor, malabaristas, estátuas humanas, homens invisíveis cirandavam por entre nós, constituindo o centro das atenções daquela bela praça. Logo ali ao lado encontrámos o Mercado de San Miguel, arrebatado por dentro e ladeado por esguias, atraentes e ajeitadas ruas, relembrando algo de Alfama. No início da nossa caminhada, ainda junto à Praça, deparámo-nos com a invulgar vitrina do “Museu del Jamón Ibérico”. Um amontoado de pernas fumadas de porco, expostas como se de um talho se tratasse. Mas claro que o paladar desta iguaria, tão singular que é pela região ibérica, merece o Museu. Apenas discutiria a sua forma. Ao fim da avenida principal depara-se com um palácio gigante, possante, até desmedido e exagerado. Como se arranjou espaço para isto? Perguntava-me. Fomos passeando em vez de questionar. De frente para ele, está também a Igreja Catedral da cidade, ponto de onde se avista a extensão urbana sobre um dos ângulos de Madrid. Vadeando o Palácio Real, no qual os atuais reis rejeitaram viver, por ser um excesso de opulência e uma incoerência num país que atravessa também, embora menor, uma crise económica. Os seus jardins conquistaram-nos por serem abertos ao público, singelos, harmoniosos e nos permitirem tirar uma boa fotografia, cartão postal da cidade. Um simpático casal de Madrilenses acercou-se para me perguntar se queria uma fotografia. Momento de diálogo ecuménico que acabou por ser uma troca de registos fotográficos no “iPhone” de cada um. De novo no Metro, fizemo-nos valer de um bilhete de 10 viagens, possível de ser partilhado por vários passageiros. Seguimos até à estação “Atocha”, a mesma onde os bárbaros atentados de 11 de Março de 2004 sucederam. Aposto à gare, está o “Museu Reina Sofia”, ao qual por desempate demos primazia sobre o Museu do Prado. Por ser um centro de arte moderna, por ter várias obras de artistas famosos como Salvador Dali, Pablo Picasso, Joan Miró, entre outros mais. Para além disso, apresenta um misto arquitetural de novo e antigo, em duas zonas distintas por onde lá se pode visitar arte. E por termos apenas 24 horas também!
No dia seguinte, as “calles” asseadas, o ceú limpo e sol impeliram-nos até à Praça “Colón”, onde está a homenagem ao Cristóvão Colombo, aí claro reclamado espanhol e não português de Cuba. De lá avistámos a Praça “Cibeles”, onde tantas vezes se gravam as peças dos enviados especiais da televisão. Com objetivo em mente de aí ingressar num autocarro turístico, aguardámos na paragem ali mais próxima. Os bilhetes não eram convidativos, pelo seu preço e pelos vários cortes no trajeto habitual devido às manifestações no centro. Mas aguardámos na paragem. Um numeroso grupo familiar espanhol apoderou-se do espaço na paragem, passando-nos à frente, e quando o autocarro chegou, subiram primeiro. Quando chegou a nossa vez de comprar os bilhetes a motorista pergunta-me: “Están com esta familia?” Ao que retorqui com a verdade. Momento então que me dizem que já não há lugares. O embate foi desnecessário e injusto, pois fica a estupidez no ar derivada de se que fizéssemos parte do grupo, então já haveria lugar para mais dois. A matemática não pode enganar. E claro que não recomendo este serviço turístico da cidade. De todo. Por dois motivos: - Primeiro porque só existe praticamente um serviço que resulta de uma parceria entre duas das maiores empresas de transporte de pessoas em Espanha. Ou seja, não há concorrência ao contrário de Lisboa. - Depois porque o preço é exorbitante. Além do mais, muitos hotéis só sabem dar informações sobre este serviço. Poderia ser por ser bom, mas não. Antes parecia um suave cartel. Achara que o áudio-guia que se ouve neste transporte valeria a pena, mas novamente o péssimo atendimento ao turista da cidade, impele-me a desaconselhar. Como alternativa, e como já eram quase as 14 horas locais, pegámos no carro e seguimos nós o trajeto demarcado no mapa do prospeto daquela mesma empresa. Numa lógica “faça você mesmo” que confesso, me devia ter logo lembrado.
No fim, à saída da cidade, procurámos com paciência, tempo e cuidado a saída certa da radial mais interna da cidade, a M30, para a auto-estrada A5-E90 que cruzando alguns parques de energia solar pelo caminho, nos levaria de novo à fronteira, demarcada pelo Rio Guadiana que corre incessante sobre a Ponte José Saramago. O regresso às portagens, à condução atacante, à crise social aguda de valores materiais e intangíveis, ao trabalho e à resmunguice. Um fim-de-semana de alinhamento com as viagens, com as minhas paixões, e o meu irmão emigrado dentro de uma união de estados agora sem fronteiras. No fim de contas sentia-me viajado por entre um ambiente fraterno. Retinia a ideia que um amigo meu me dissera semanas antes: “na península ibérica somos principalmente influenciados pela cultura moçárabe”. E acrescentaria, que fomos apartados por reinados, interesses comerciais e ainda o somos pela legítima auto-determinação, mas estamos também unidos por um passado partilhado de coexistência pacífica tanto como de embates entre islâmicos e católicos.
Museu Nacional - Centro de Arte - Reina Sofia |
A estação que mais nos deixa no centro chama-se “Sol”, local das famigeradas e revolucionárias acampadas de 2010 e 2011, réplica das do Rossio em Lisboa, refira-se também. Ali, mais do que noutro lugar da urbe, sentia-se o bulício citadino de uma cidade de seis milhões, também em processo de auto-análise política e social. Várias vozes se faziam reclamar na via pública. Por exemplo os movimentos depois assumidos como partidos “Podemos”, ou a sua contra-versão “Ciudadanos”, etc. Mas o Carnaval ainda ludibriava muito as atenções de causas políticas. Desde as “Puertas del Sol” caminhámos ao todo por duas ou três horas. “Calle Mayor” abaixo, até à respetiva “Plaza Mayor”, enclaustrada por firmes fachadas vermelhas, o tom nacional, e que nos eram recordação de um imaginário construído de imagens televisivas e de vetustas memórias. Como este fim-de-semana era também de Carnaval, julgámos nós que por isso, havia vários artistas locais que tentavam pregar sustos aos mais incautos. No centro da Plaza Mayor, malabaristas, estátuas humanas, homens invisíveis cirandavam por entre nós, constituindo o centro das atenções daquela bela praça. Logo ali ao lado encontrámos o Mercado de San Miguel, arrebatado por dentro e ladeado por esguias, atraentes e ajeitadas ruas, relembrando algo de Alfama. No início da nossa caminhada, ainda junto à Praça, deparámo-nos com a invulgar vitrina do “Museu del Jamón Ibérico”. Um amontoado de pernas fumadas de porco, expostas como se de um talho se tratasse. Mas claro que o paladar desta iguaria, tão singular que é pela região ibérica, merece o Museu. Apenas discutiria a sua forma. Ao fim da avenida principal depara-se com um palácio gigante, possante, até desmedido e exagerado. Como se arranjou espaço para isto? Perguntava-me. Fomos passeando em vez de questionar. De frente para ele, está também a Igreja Catedral da cidade, ponto de onde se avista a extensão urbana sobre um dos ângulos de Madrid. Vadeando o Palácio Real, no qual os atuais reis rejeitaram viver, por ser um excesso de opulência e uma incoerência num país que atravessa também, embora menor, uma crise económica. Os seus jardins conquistaram-nos por serem abertos ao público, singelos, harmoniosos e nos permitirem tirar uma boa fotografia, cartão postal da cidade. Um simpático casal de Madrilenses acercou-se para me perguntar se queria uma fotografia. Momento de diálogo ecuménico que acabou por ser uma troca de registos fotográficos no “iPhone” de cada um. De novo no Metro, fizemo-nos valer de um bilhete de 10 viagens, possível de ser partilhado por vários passageiros. Seguimos até à estação “Atocha”, a mesma onde os bárbaros atentados de 11 de Março de 2004 sucederam. Aposto à gare, está o “Museu Reina Sofia”, ao qual por desempate demos primazia sobre o Museu do Prado. Por ser um centro de arte moderna, por ter várias obras de artistas famosos como Salvador Dali, Pablo Picasso, Joan Miró, entre outros mais. Para além disso, apresenta um misto arquitetural de novo e antigo, em duas zonas distintas por onde lá se pode visitar arte. E por termos apenas 24 horas também!
No
regresso, fomos repastar-nos com um lanche num café / “snack”,
momento em que tivemos uma primeira altercação. Sempre dei o meu
melhor para comunicar num castelhano o mais completo e percetível
que podia, mas não sei se por se notar alguma distonia sonora, se
por antipatia crónica, os modos com que nos atenderam nesse lanche e
no pequeno-almoço seguinte, deixaram a desejar e colocaram-nos a
refletir. Na mesa da janela, contemplava os urbanos locais a
circularem nas suas ruas. Estava longe de casa, a cerca de 800
quilómetros, mas ao mesmo tempo eram-me todos algo familiares
aqueles semblantes. Mas no fundo falavam outra língua, viam outras
notícias, votavam noutros sistemas, e tinham várias origens
diferentes. Aí sentia a Madrid cosmopolita, diversa, mesclada. Logo à
saída do Metro, atentara num grupo de jovens ativistas, que
ultimavam cartazes de manifestação, pareceu-me de relance que
seriam pela liberdade sexual, contra o tradicional dia de São
Valentim. Pouco depois, enquanto comíamos uma parca tosta e um chá
de “manzanilla” no tal café / “snack”, do outro lado da rua,
já se reuniam mais manifestantes. E a polícia municipal já
condicionava o trânsito, naquela que é uma das mais movimentadas
praças da cidade. No dia seguinte, novamente esta praça estaria
interdita devido a um marcha de protesto. De retorno às carruagens
do metro, ecoavam duas vozes, uma masculina que tonitruava
estereofonicamente “Próxima Estación”. E uma feminina que logo
de seguida anunciava mais singela o nome da estação: “Príncipe
de Vergara”. Já não me surpreendia e até despoletava boas
memórias, dos “skits” do Manu Chao no seu segundo álbum a
“solo”, assim como do do metropolitano de Barcelona. De regresso,
tínhamos que agilizar o jantar, processo que demorado, paciente e
indeciso, acabou, como sempre, por se resolver a ele mesmo. Acabámos
no bairro de “Salamanca”, num restaurante não programado, depois
de algumas tentativas goradas, a jantar carnes grelhadas,
acompanhadas de pão branco espanhol e vinho da região demarcada “La
Rioja”. A Sofia, o meu irmão e eu, na ampla cave do restaurante
“Olvido” também ele “pirro”, não fossemos estar na área do
estádio Santiago Barnabéu, do Real. O melhor da noite ainda estaria
para vir, pois era o motivo da nossa deslocação até aquele bairro.
O meu irmão ia depois subir ao palco para tocar guitarra numa “jam
session” de “blues”. Os dois “solos” de guitarra que nos
presenteou foram complexos e dignos de registo. De regresso ao Hotel
de táxi, a chuva de pingos frios fez-se sentir numa Madrid molhada
em noite de romance.
No dia seguinte, as “calles” asseadas, o ceú limpo e sol impeliram-nos até à Praça “Colón”, onde está a homenagem ao Cristóvão Colombo, aí claro reclamado espanhol e não português de Cuba. De lá avistámos a Praça “Cibeles”, onde tantas vezes se gravam as peças dos enviados especiais da televisão. Com objetivo em mente de aí ingressar num autocarro turístico, aguardámos na paragem ali mais próxima. Os bilhetes não eram convidativos, pelo seu preço e pelos vários cortes no trajeto habitual devido às manifestações no centro. Mas aguardámos na paragem. Um numeroso grupo familiar espanhol apoderou-se do espaço na paragem, passando-nos à frente, e quando o autocarro chegou, subiram primeiro. Quando chegou a nossa vez de comprar os bilhetes a motorista pergunta-me: “Están com esta familia?” Ao que retorqui com a verdade. Momento então que me dizem que já não há lugares. O embate foi desnecessário e injusto, pois fica a estupidez no ar derivada de se que fizéssemos parte do grupo, então já haveria lugar para mais dois. A matemática não pode enganar. E claro que não recomendo este serviço turístico da cidade. De todo. Por dois motivos: - Primeiro porque só existe praticamente um serviço que resulta de uma parceria entre duas das maiores empresas de transporte de pessoas em Espanha. Ou seja, não há concorrência ao contrário de Lisboa. - Depois porque o preço é exorbitante. Além do mais, muitos hotéis só sabem dar informações sobre este serviço. Poderia ser por ser bom, mas não. Antes parecia um suave cartel. Achara que o áudio-guia que se ouve neste transporte valeria a pena, mas novamente o péssimo atendimento ao turista da cidade, impele-me a desaconselhar. Como alternativa, e como já eram quase as 14 horas locais, pegámos no carro e seguimos nós o trajeto demarcado no mapa do prospeto daquela mesma empresa. Numa lógica “faça você mesmo” que confesso, me devia ter logo lembrado.
No fim, à saída da cidade, procurámos com paciência, tempo e cuidado a saída certa da radial mais interna da cidade, a M30, para a auto-estrada A5-E90 que cruzando alguns parques de energia solar pelo caminho, nos levaria de novo à fronteira, demarcada pelo Rio Guadiana que corre incessante sobre a Ponte José Saramago. O regresso às portagens, à condução atacante, à crise social aguda de valores materiais e intangíveis, ao trabalho e à resmunguice. Um fim-de-semana de alinhamento com as viagens, com as minhas paixões, e o meu irmão emigrado dentro de uma união de estados agora sem fronteiras. No fim de contas sentia-me viajado por entre um ambiente fraterno. Retinia a ideia que um amigo meu me dissera semanas antes: “na península ibérica somos principalmente influenciados pela cultura moçárabe”. E acrescentaria, que fomos apartados por reinados, interesses comerciais e ainda o somos pela legítima auto-determinação, mas estamos também unidos por um passado partilhado de coexistência pacífica tanto como de embates entre islâmicos e católicos.
João