Levantou
cedo. Uma janela entreaberta depois de um cigarro tardio deixou
entrar logo ao alvorecer, o som da chamada à oração difundido
pelos altifalantes da mesquita, acordando assim o desprevenido
viajante. Desce agora a Avenida Mohamed V, de mapa na mão, não vá
falhar o local onde é necessário voltar à direita para então
rumar à Gare «Routière» de Tânger. O trânsito é intenso àquela
hora da manhã. Repara como alguns peões se aventuram a atravessar
por entre os carros, que teimam em não abrandar mesmo nas
passadeiras, mas que acabam por parar no último instante ou
contornar os assustados transeuntes, que muitas vezes aguardam pela
chegada de companhia que lhes permita avançar em pequeno grupo e
cruzar mais facilmente a larga avenida. Não
há que enganar. Só pode ser ali. Um imenso edifício rodeado de
dezenas de autocarros. Entra e procura as bilheteiras mas não as
encontra no meio daquele turbilhão de gentes arrastando sacos e
malas. Entre os passageiros que se entrecruzam ouve então pregões
gritados compassadamente: «Rabat, Rabat, Rabat», «Chefchaouen,
Chefchaouen, Chefchaouen», «Tetouan, Tetouan, Tetouan». «Tetuan?»
pergunta-lhe um jovem agarrando-lhe o braço. Responde que sim e
rapidamente sente-se conduzido por entre a multidão até uma porta
que dá acesso a um pequeno átrio cheio de bilheteiras dotadas de
corrimões metálicos destinados a orientar as filas que se deveriam
estar a formar mas que estranhamente não existem. Não se orientaria
ali com os letreiros escritos em árabe mas também não precisa. O
jovem leva-o até um homem sentado num dos corrimões diante de uma
bilheteira vazia. Cinco «dirhams»
e recebe um pequeno bilhete completamente escrito em árabe. E agora?
Os autocarros às dezenas que estão estacionados no exterior não
têm placas indicativas, nem números ou sequer letreiros, nisso já
tinha reparado. Mas é para estas coisas que servem os guias, mesmo
que de ocasião como é o rapaz, que lhe volta a agarrar no braço e
o conduz gare fora até um dos muitos autocarros estacionados. No fim
a gorjeta claro. Tem de ser. Mas que preciosa tinha sido a ajuda,
pensa o viajante enquanto sobe para o autocarro. O veículo não é
nada novo, lá isso não. Mas não deixa de ser confortável mesmo
com os estofos já gastos e nalguns sítios rasgados. Há ainda
muitos lugares vazios. Mas os passageiros vão chegando. Um homem
vestido de forma tradicional entra e vai distribuindo uns livrinhos
pelos passageiros. A ele não, que se topa à légua que é
estrangeiro e seria incapaz de ler o que quer que seja escrito em
árabe. Depois é a vez de um vendedor de perfumes e bugigangas.
Pincela a mão de cada passageiro com uma espécie de um «baton»
que deixa no ar um perfume refinado. Este não discrimina os
estrangeiros, pensa enquanto aspira a essência com que também foi
presenteado. Em poucos minutos o autocarro enche e arranca.
Atravessa primeiro os arredores de Tânger, bairros novos de casas
baixas com árvores nas ruas depois a Estação Ferroviária onde faz
uma primeira paragem antes de se fazer à estrada. Uma hora é quanto
demora a percorrer a distância entre Tânger e Tetouan numa estrada
asfaltada e em boas condições. O viajante desfruta da paisagem. A
princípio aplanada para depois entrar na montanha verdejante e
coberta de árvores. Da janela deixa-se encantar pelos burros
albardados que esperam pacientes os donos na beira da estrada, pelos
pequenos mercados, por uma bancada que vê cheia de «tadjines», a
rainha das peças de cozinha marroquina, em variados tamanhos. Fica
com pena de não puder descer e comprar uma de barro simples, tão
diferentes das decorativas que se impingem aos turistas nas grandes
cidades.
Vista do centro de Tetouan - de Anassbarnichou2 - Licença CC BY-SA 3.0 |
Tetouan
surge ao longe. Casas brancas descendo numa encosta rodeada de nuvens
baixas, que a Primavera em Marrocos prega destas partidas, e hoje vai
chuviscando de quando, em quando. O seu nome é de origem berbere,
essa língua antiga do Norte de África, e significa olhos, olhos de
água. A cidade tem origens muito antigas, não muito longe dali,
foram encontrados vestígios fenícios e do Império Romano. Ao
longo dos tempos muitos povos passaram por Tetouan ou não estivesse
tão próxima como está do Estreito de Gibraltar. A cidade funcionou
durante séculos como centro de ligação entre o norte de África e
o sul da Península Ibérica que estiveram politicamente unificados
até à ao final da Reconquista com a queda de Granada em 1492.
Depois da Reconquista muitos dos expatriados refugiaram-se em Tetouan
tendo a ultima vaga de muçulmanos vindos de Espanha chegado no ano
de 1609 expulsos em massa pela Inquisição. Também expulsas pela
Inquisição ali chegaram importantes comunidades judias no século
XV provenientes de toda a Península Ibérica. A cidade manteve
sempre intensas trocas económicas e culturais com o sul de Espanha e
foi protectorado Espanhol de 1912 até 1959 altura em que foi
finalmente integrada no Reino de Marrocos. Pensa nisto o viajante
quando se aproxima e começa a entrar nas primeiras ruas da cidade,
ruas modernas ladeando o rio que corre num vale verdejante situado
aos pés da montanha, coroada desde a meia encosta, pelo vasto
casario largo e branco da cidade antiga. O terminal rodoviário de
Tetouan, onde desce, é um espaço organizado e de planta moderna. Um
edifício não muito diferente de um terminal rodoviário de qualquer
pequena cidade na Europa. Surpreende-se com os letreiros bilingues,
escritos a verde sobre um fundo branco em árabe e em francês.
Repara na Sala de Orações, mas não consegue ver como ela é por
dentro, isolada que está dos olhares dos curiosos. Mesmo assim,
quando a porta se abre para dar entrada a um crente em viagem, repara
que no chão existem espaços desenhados e delimitados para a oração.
Outra surpresa, são as casas de banho. Com apenas uma torneira perto
do chão, um balde e uma bacia sanitária à turca fixa ao solo. E
não fossem estes pormenores, ou as gentes que por ali circulam, e o
viajante poderia sem dificuldade achar que estava na Europa. Mas não
está. Disso se vai aperceber rapidamente quando depois de esperar na
fila de táxis consegue entrar num e não é capaz de se fazer
entender com o taxista. Nem francês, nem inglês. Talvez tivesse
sido mais bem-sucedido se tivesse utilizado o Espanhol ou o Português
mas tal não lhe ocorreu na hora e na atrapalhação. Afinal na
cidade falou-se espanhol até aos anos sessenta e isso claro deixou
marcas. Faz uma segunda tentativa que resulta igual. Só à terceira
tentativa se faz entender e combina o preço da viagem, como todos os
roteiros feitos para turista aconselham, roteiros esses, onde
aprendeu também a distinguir os «petit táxi», das viagens urbanas
dos «grand táxi», que fazem os percursos mais longos entre
cidades. Combinado o preço, apenas 10 «dirhams» o equivalente a um
euro, arranca rumo ao centro da cidade. Percorridos apenas algumas
centenas de metros o simpático taxista acena a uma mulher e pára.
Uma amiga? Uma cliente? Fica sem saber. É hábito em Marrocos os
táxis recolherem vários passageiros durante o percurso. A mulher
entra, cumprimenta e para surpresa do viajante fala um francês
perfeito. Logo lhe dá as Boas Vindas a Tetouan e a Marrocos e
enquanto conversa traduz ao jovem taxista o que vai sabendo. Não é
a primeira vez que uma coisa assim acontece. Se os jovens em geral
dificilmente entendem uma frase em francês, as pessoas de mais idade
e de mais elevada escolaridade falam-no com fluência. As línguas
oficiais de Marrocos são o Árabe numa versão própria e o Berbere
minoritário em vários dialectos. O Francês é ainda bastante usado
nas instituições governamentais e no mundo dos negócios embora
esteja em declínio como o viajante irá perceber mais adiante quando
visitar uma livraria repleta de títulos escritos em árabe e se
deparar com uma única e exígua prateleira com não mais de trinta
títulos em francês, quase todos clássicos.
No
caminho, sempre a subir, ainda consegue ver uma manifestação de
sindicalistas com uma pequena faixa desfraldada junto à estrada mas
fica sem saber o que reivindicam. Marrocos é uma monarquia onde
alguns se queixam por vezes de ataques à liberdade de expressão e a
questão nunca resolvida do Saara
Ocidental ocupado permanece como uma nódoa sobre o país. O táxi
deixa-o mesmo no centro da cidade e ruma à Medina, a cidade antiga,
classificada como Património Mundial da Humanidade pela UNESCO.
Antes passa por uma larga avenida pedonal que vai desembocar na Praça
Hassan II onde se encontra um dos acessos à Medina. A avenida está
repleta de lojas modernas e cafés com esplanadas. Os edifícios são
altos e muito bem cuidados alguns com marcas de um estilo muito
semelhante aos que se encontram em todo o sul de Espanha. A Praça
Hassan II é dos anos oitenta e nela se encontra o Palácio Real.
Sabe o viajante que a construção desta praça foi feita sobre os
escombros da antiga Praça Feddán, local de reunião emblemático da
cidade, e que o imponente Palácio Real ocupa o espaço onde estava o
Alto Comissariado Espanhol porque a História tem destas coisas e o
monarca quis ao mesmo tempo apagar os traços do anterior poder
colonial e algumas veleidades autonómicas que a
região sempre teve. Aqui ao contrário do que viu em Tânger os
turistas são poucos e o assédio de improvisados guias é nenhum.
Por isso dá uma volta descansado pelo mercado, o «souk», de uma
das laterais e aproveita para comprar um saquinho de morangos não
sem antes provar dois que lhe foram oferecidos pelo simpático
vendedor. Estavam lavados sim, e mergulhados em água numa bacia
imensa. E inflige assim aquela regra básica que houvera aprendido:
Cozido ou descascado, mas dai não lhe virá nenhum problema e os
morangos eram realmente magníficos e vieram mesmo a calhar antes de
se aventurar na Medina.
A
Medina ou cidade antiga a que se acede a partir desta praça é um
vasto e labiríntico espaço de casas baixas, imaculadamente brancas
e ruelas estreitas cercado por uma muralha com cerca de cinco
quilómetros de extensão e apenas sete portas de entrada.
Aventura-se o viajante a entrar por ali adentro sabendo de antemão
que se irá perder mas não se preocupa agora com isso. Avança nas
ruelas que se bifurcam sinuosas e espreita as lojas, perde-se na
imensidão dos produtos expostos, desfruta dos odores e das cores das
frutas frescas, dos legumes, das comidas, ofusca-se com o brilho dos
metais e das joias expostas, com os objectos de couro e madeira e vai
reparando nas portas verdes, nos ladrilhos policromos,
nas coberturas colocadas sobre as ruelas que cortam o sol, nos
artífices trabalhando nas soleiras das portas dos seus
estabelecimentos, nos arcos das casas que atravessam por cima das
ruas e formam aqui e ali pequenos túneis
que tem de transpor para chegar a novas ruelas que outra vez se
bifurcam e derivam a todo o momento noutras sempre iguais e sempre
diferentes, algumas com degraus, outras com fontes, abrindo-se em
novos recantos a cada esquina. E com isto logo se perde e atravessa
sem perceber o «Mellah», o antigo bairro judeu onde as ruas são
rectilíneas e as pequenas praças quadrangulares e descobre ainda,
quase por acaso, uma pequena mesquita isto enquanto deambula por
entre o bulício de vendedores e habitantes na sua maioria vestidos
com a tradicional «djellaba», uma espécie de robe largo que chega
até aos pés com mangas compridas e um capucho largo que termina
numa ponta em bico. E de tanto ver era certo e sabido que se
perderia. Admite agora que deveria ter seguido o conselho, que não
se deveria ter aventurado na Medina de Tetouan sem a ajuda dum guia.
Agora só perguntando. É o que
faz pois não tem outro remédio. Depois de muitos enganos e
perguntas lá consegue encontrar a saída e chega cansado mas feliz à
grande praça de onde tinha saído horas antes. Nada melhor que
descansar antes do regresso a Tânger, onde se hospedou e tem cama e
mesa à espera. Escolhe um café com esplanada, pede um chá de menta
e fica ali a olhar para quem passa. Já não estranha que no café só
estejam homens porque a isso já se habituou. Nem estranha as
diferenças nos vestuários das gentes que atravessam a rua. Porque
se muitos usam o vestuário tradicional, outros vestem-se como em
qualquer cidade da Europa. E se é verdade que a maioria das mulheres
cobre os cabelos com um véu também é verdade que outras, sobretudo
jovens, ostentam livres o seu cabelo ao vento.
Antes
de partir ainda vai entrar numa livraria. Não é grande, mas é
bonita com estantes em madeira antiga. Deve ser sem dúvida do
período colonial. Perde-se entre os milhares de títulos expostos
todos em árabe. Rebusca, vasculha, olha e não encontra nada em
francês, espanhol ou inglês. A livreira que o tinha saudado à
entrada depois do seu sonoro «Bonjour» é uma mulher de meia-idade
de cabelo coberto por um véu e um vestido que lhe cobre todo o corpo
e os braços, como os que a maioria das mulheres marroquinas usam.
Aproxima-se dela e procura por títulos em francês. A mulher
indica-lhe num francês perfeitíssimo uma pequena prateleira numa
lateral próxima da entrada. Não mais que trinta livros. São quase
todos clássicos franceses.
Repara no «Le Petit Prince» que já tinha visto numa magnífica
versão em árabe, mas de autores marroquinos só encontra um livro
de poesia de um autor radicado na Bélgica e um estudo sobre as
migrações no Mediterrâneo. E fica preocupado com o futuro da
língua de Molière naquela parte do mundo. Ainda encontra um jornal
bilingue em árabe e francês mas pouco mais. Do passado colonial,
tirando a arquitectura, fica com a impressão de não restar muito
hoje em Tetouan. E já dentro do táxi, de regresso, enquanto se
despede da cidade, vai meditando na riqueza que o encontro de povos e
culturas criou nesta cidade que foi durante séculos o entreposto
entre o norte de África e a Europa. A Pomba Branca, como é
conhecida a cidade, resplandece ao fim dia na montanha, enquanto um
fugaz Arco-íris se acende no horizonte.
AP