sexta-feira, 14 de julho de 2017

Rosso

As buzinas e os gritos pareciam ensurdecedores depois do silêncio apaziguador do deserto. O pó das ruas arenosas da pequena cidade fronteiriça de Rosso enchia o ar devido à agitação de gente, carros e motas. A azáfama ia e vinha do Senegal, ali do outro lado do preguiçoso rio, que deu o nome ao país. Saíra de Nouakchott naquela manhã, num carro ruidoso e acotovelado de famílias mauritanas, uma travessia ao ritmo que o calor sahariano permitia e em que tudo o que se via eram as cores quentes das dunas contra o azul forte do céu.


Uma multidão sufocante, que só depois percebi serem barqueiros, assaltou-me assim que aterrei na rua principal. Competiam por clientes que quisessem atravessar o rio Senegal, e eu lutava para me desembaraçar. Um deles acabou por me levar à margem do rio, onde a sua canoa repousava inquieta, metade balançando já na água. Alguns passageiros de rosto quieto aninhavam-se de forma paciente junto dos seus sacos e bagagens. Depois de trazer um e mais outro, o barqueiro decidiu que já éramos suficientes para fazer a travessia, e remou contra a corrente para o outro lado enquanto recolhia os pagamentos, um a um. Do lado Senegalês, desembarcava-se numa serenidade refrescante. O “Rosso” da margem sul parecia muito menor do que o seu gémeo a norte. O alívio que todos pareciam sentir dava a impressão de sermos refugiados em barcas, fugidos do bulício. Perguntei onde poderia apanhar um transporte para a capital, Dakar, e apontaram-me a direção da rodoviária, no fim de uma estrada poeirenta e com pouco movimento, ladeada de algumas acácias quase secas.
A pista de terra vermelha levou-me em alguns minutos a uma zona aberta onde repousavam velhas carrinhas Mercedes, expatriadas há muito tempo e meio decompostas pelas agrestes e estrangeiras vias. Em torno da área central algumas barracas serviam lentamente pratos de arroz com peixe, ovo mexido e café instantâneo a clientes apressados. O ambiente não era de atropelo nem agitação, pelo menos não a suficiente para me dar confiança de que haveriam transportes regulares na direcção da capital. Segui os dedos que me apontaram o próximo transporte para Dakar e um homem encostado a um velho autocarro confirmou-me ir para o destino pretendido.
No interior, duas mulheres sonolentas olhavam o infinito, indiferentes à vida, perto dos seus sacos cheios de pertences coloridos, que mantinham desnecessariamente perto de si. Os restantes lugares só eram ocupados por ar, moscas e pó. Perguntei quanto tempo demoravam a partir para Dakar. – “Daqui a dez minutos saímos”. Tudo o que queria era acreditar na resposta, pousar as bagagens e atirar o corpo para um dos bancos. E assim fiz. Os dez minutos multiplicaram-se, perderam-se nas contas, e a fome chegou. A pergunta renovada obteve semelhante resposta mas desta vez sem a mesma crença, ao que decidi misturar-me com a animação das barracas de comida, o foco da vida daquele lugar.  De lá via o transporte, por isso não iriam embora sem mim.
As horas passavam e poucos novos passageiros tinham chegado, mas todos quantos chegavam traziam sempre a resignação facial de quem não teme o tempo. A manhã transformou-se em tarde, e depois em noite. Treze horas num exercício de espera, desespero e conformidade, até que o condutor e assistente decidiram que já haviam passageiros suficientes para partir. Acenderam-se luzes, reanimaram-se as almas, e ajeitaram-se os corpos nos bancos duros. A noite avançou pela estrada turbulenta, com um Senegal invisível aos meus olhos, vestido de negro.
A impossibilidade de dormir nos duros e apinhados assentos apenas deu vislumbres de sonhos em que me pareceu várias vezes ter chegado ao destino. Mas as falsas chegadas só culminaram com um amanhecer rápido, que desocultava aquele país e me acolhia finalmente no destino. Os apitos, vozes altas e fumos não deixavam dúvida, tínhamos chegado a Dakar. 

Fernando Sousa