As buzinas e os
gritos pareciam ensurdecedores depois do silêncio apaziguador do deserto. O pó
das ruas arenosas da pequena cidade fronteiriça de Rosso enchia o ar devido à
agitação de gente, carros e motas. A azáfama ia e vinha do Senegal, ali do
outro lado do preguiçoso rio, que deu o nome ao país. Saíra de Nouakchott
naquela manhã, num carro ruidoso e acotovelado de famílias mauritanas, uma
travessia ao ritmo que o calor sahariano permitia e em que tudo o que se via
eram as cores quentes das dunas contra o azul forte do céu.
Uma multidão sufocante,
que só depois percebi serem barqueiros, assaltou-me assim que aterrei na rua
principal. Competiam por clientes que quisessem atravessar o rio Senegal, e eu
lutava para me desembaraçar. Um deles acabou por me levar à margem do rio, onde
a sua canoa repousava inquieta, metade balançando já na água. Alguns
passageiros de rosto quieto aninhavam-se de forma paciente junto dos seus sacos
e bagagens. Depois de trazer um e mais outro, o barqueiro decidiu que já éramos
suficientes para fazer a travessia, e remou contra a corrente para o outro lado
enquanto recolhia os pagamentos, um a um. Do lado Senegalês, desembarcava-se
numa serenidade refrescante. O “Rosso” da margem sul parecia muito menor do que
o seu gémeo a norte. O alívio que todos pareciam sentir dava a impressão de
sermos refugiados em barcas, fugidos do bulício. Perguntei onde poderia apanhar
um transporte para a capital, Dakar, e apontaram-me a direção da rodoviária, no
fim de uma estrada poeirenta e com pouco movimento, ladeada de algumas acácias
quase secas.
A pista de
terra vermelha levou-me em alguns minutos a uma zona aberta onde repousavam
velhas carrinhas Mercedes, expatriadas há muito tempo e meio decompostas pelas
agrestes e estrangeiras vias. Em torno da área central algumas barracas serviam
lentamente pratos de arroz com peixe, ovo mexido e café instantâneo a clientes
apressados. O ambiente não era de atropelo nem agitação, pelo menos não a
suficiente para me dar confiança de que haveriam transportes regulares na
direcção da capital. Segui os dedos que me apontaram o próximo transporte para
Dakar e um homem encostado a um velho autocarro confirmou-me ir para o destino
pretendido.
No interior,
duas mulheres sonolentas olhavam o infinito, indiferentes à vida, perto dos
seus sacos cheios de pertences coloridos, que mantinham desnecessariamente
perto de si. Os restantes lugares só eram ocupados por ar, moscas e pó. Perguntei
quanto tempo demoravam a partir para Dakar. – “Daqui a dez minutos saímos”. Tudo
o que queria era acreditar na resposta, pousar as bagagens e atirar o corpo
para um dos bancos. E assim fiz. Os dez minutos multiplicaram-se, perderam-se
nas contas, e a fome chegou. A pergunta renovada obteve semelhante resposta mas
desta vez sem a mesma crença, ao que decidi misturar-me com a animação das
barracas de comida, o foco da vida daquele lugar. De lá via o transporte, por isso não iriam
embora sem mim.
As horas
passavam e poucos novos passageiros tinham chegado, mas todos quantos chegavam
traziam sempre a resignação facial de quem não teme o tempo. A manhã
transformou-se em tarde, e depois em noite. Treze horas num exercício de
espera, desespero e conformidade, até que o condutor e assistente decidiram que
já haviam passageiros suficientes para partir. Acenderam-se luzes,
reanimaram-se as almas, e ajeitaram-se os corpos nos bancos duros. A noite
avançou pela estrada turbulenta, com um Senegal invisível aos meus olhos,
vestido de negro.
A
impossibilidade de dormir nos duros e apinhados assentos apenas deu vislumbres
de sonhos em que me pareceu várias vezes ter chegado ao destino. Mas as falsas
chegadas só culminaram com um amanhecer rápido, que desocultava aquele país e
me acolhia finalmente no destino. Os apitos, vozes altas e fumos não deixavam
dúvida, tínhamos chegado a Dakar.
Fernando Sousa
Fernando Sousa