segunda-feira, 21 de agosto de 2017

Viagem à Festa Monumental

As viagens, tal como as cidades, não necessitam de ser grandes para se tornarem monumentais e memoráveis. Coimbra fica a apenas a duas horas de Lisboa e a uma do Porto, sendo uma cidade de média dimensão. O seu património histórico que vai desde a Universidade, uma das mais antigas da Europa, até às igrejas românicas ou às ruínas romanas de Conímbriga, confere-lhe só por si uma monumentalidade indiscutível. Mas a verdadeira monumentalidade da cidade é a humana, que nasce dos milhares de estudantes universitários que ali vivem durante os seus anos de estudo. Monumentais dizem ser, os anos que se passam em Coimbra, estudando. Não é por acaso que nas Reblicas, as residências comunitárias dos estudantes, se contam os aniversários como centenários. Ali, um ano de juventude parece valer, de facto, por muitos mais.
Os estudantes e as suas capas negras do traje académico marcam a paisagem da cidade. A descida de centenas de vestes negras pela Escadaria Monumental, que liga a Universidade ao coração da cidade na Praça de República, impressiona qualquer um. Nas imediações desta praça ficam também várias repúblicas, fáceis de encontrar pelas tabuletas, que apresentam nas fachadas. “Ay-ó-Linda”, “Rápo-Táxo”, “Fantasmas”. A vida estudantil marca indelevelmente a cidade e os seus ritmos esvaziando-se aos fins-de-semana e nas férias escolares voltando a encher-se em Setembro com o início das aulas. O pulsar estudantil também se escreve nas paredes, onde os graffitis abundam. “Paredes brancas consciências sujas”, alguém escreveu no pedestal de uma estátua em frente da Faculdade de Letras. Os slogans de pendor libertário e as pinturas contra a transformação da Universidade em Fundação, que está a um passo de se concretizar privatizando desta forma o ensino público, marcam presença na cidade.
Um dos pontos altos de Coimbra e do ano académico é sem dúvida a semana da Queima das Fitas. Acontece no início de Maio e antecede o período de estudo intenso que irá culminar nos exames de Julho. Durante uma semana, o tempo é mesmo todo de festa e folia. Começa a festa a uma quinta-feira com a chamada Serenata Monumental. Nas escadarias da Sé Velha logo após as badaladas da meia-noite na torre sineira, as guitarras iniciam os seus trinados a que depois se irão juntar as vozes em coro. Ao redor, no largo e nas ruelas estreitas que nele confluem, uma multidão de milhares de pessoas escutam em silêncio o Fado de Coimbra que tradicionalmente não é aplaudido. O silêncio da multidão impressiona pela sua grandeza. São milhares de pessoas acotoveladas, de pé e literalmente engarrafadas ao longo de muitas centenas de metros de ruelas tortuosas, de becos, vielas e escadarias desta parte velha da cidade. Uma experiência a evitar por agorafóbicos. Mal o concerto acaba é-se arrastado pela multidão que abandona o local. Quem tiver a sorte de ser levado pelas escadarias acima irá desaguar no átrio da Universidade onde uma colossal festa já se iniciou. Aqui o ritmo é marcado pelos DJs e o ambiente é o de uma discoteca, mas gigantesca e a céu aberto, com milhares de estudantes. Muitas barraquinhas de cerveja, bifanas e cachorros, muita animação entre os edifícios das várias faculdades. E lá pode dançar-se até ao nascer do dia.


Os dias que se seguem são invariavelmente de festa. Diariamente no Queimódromo, é assim que se chama o espaço que fica junto à margem esquerda do Mondego onde decorrem os concertos, grupos famosos de músicos nacionais e internacionais desfilam todas as noites até às tantas da madrugada. E não precisa de pagar bilhete para ouvir os concertos. O volume do som atravessa o rio, sendo perfeitamente audível no outro lado da cidade. Na pequena encosta que rodeia o recinto, milhares de borlistas desfrutam do som sentados na relva invariavelmente acompanhados de muitas latas de cerveja e garrafões de vinho tinto. Mas o auge da semana académica é no Domingo com o Cortejo da Queima das Fitas. A cidade nesse dia enche-se de forasteiros. São as famílias dos estudantes, as gentes das redondezas, antigos estudantes e milhares de turistas que confluem na cidade. A festa começa cedo com lançamento de foguetes, gaiteiros, tambores e filarmónicas que se passeiam pela baixa da cidade. Na alta, em redor da Universidade, vão-se a pouco e pouco juntando dezenas de carros alegóricos decorados com as cores dos cursos. Os de Medicina de amarelo, Letras de azul, Direito de vermelho, Farmácia de roxo, Psicologia de cor de laranja e mais umas dezenas de combinações englobando todos os cursos. Ao início da tarde, entre milhares de pessoas, os carros carregados de estudantes e de centenas de litros de cerveja iniciam uma descida que só irá terminar, horas depois, na Praça da Portagem junto ao rio.
O ambiente é de uma festa indescritível. Em cima dos carros, os estudantes gritam, riem, bebem, borrifam com cerveja os colegas e as gentes que ocupam as ruas. Distribuem, a quem lhes estica a mão, latas de cerveja sem conta. A cerveja escorre nas gargantas, nos fatos e nas ruas. As fitas agitam-se no ar entre cartolas e bengalas dos que circulam a pé na frente dos respectivos carros. A saudação académica é gritada vezes sem conta e um pouco por todo o lado. Os antigos estudantes com as suas pastas e as velhas fitas misturam-se também no cortejo. Aproveitaram este fim-de-semana para a sua romagem anual a Coimbra e aos jantares de curso onde se revivem os velhos tempos de estudantes. Uma mística de saudade que a passagem por Coimbra lhes deixou. Sim, porque como lembrava o cartaz colocado na entrada do Queimódromo: «Há momentos que só acontecem uma vez na vida».


António Pereira