As
viagens, tal como as cidades, não necessitam de ser grandes para se
tornarem monumentais e memoráveis. Coimbra fica a apenas a duas
horas de Lisboa e a uma do Porto, sendo uma cidade de média
dimensão. O seu património histórico que vai desde a Universidade,
uma das mais antigas da Europa, até às igrejas românicas ou às
ruínas romanas de Conímbriga, confere-lhe só por si
uma monumentalidade indiscutível. Mas a verdadeira monumentalidade
da cidade é a humana, que nasce dos milhares de estudantes
universitários que ali vivem durante os seus anos de estudo.
Monumentais dizem ser, os anos que se passam em Coimbra, estudando.
Não é por acaso que nas Repúblicas,
as residências comunitárias dos estudantes, se contam os
aniversários como centenários. Ali, um ano de juventude parece
valer, de facto, por muitos mais.
Os
estudantes e as suas capas negras do traje académico marcam a
paisagem da cidade. A descida de centenas de vestes negras pela
Escadaria Monumental, que liga a Universidade ao coração da cidade
na Praça de República,
impressiona qualquer um. Nas imediações desta praça ficam também
várias repúblicas, fáceis de encontrar pelas tabuletas, que
apresentam nas fachadas. “Ay-ó-Linda”,
“Rápo-Táxo”, “Fantasmas”.
A vida estudantil marca indelevelmente a cidade e os seus ritmos
esvaziando-se aos fins-de-semana e nas férias escolares voltando a
encher-se em Setembro com o início
das aulas. O pulsar estudantil também se escreve nas paredes, onde
os graffitis
abundam. “Paredes brancas consciências sujas”,
alguém escreveu no pedestal de uma estátua em frente da Faculdade
de Letras. Os slogans
de pendor libertário e as pinturas contra a transformação da
Universidade em Fundação, que está a um passo de se concretizar
privatizando desta forma o ensino público, marcam presença na
cidade.
Um
dos pontos altos de Coimbra e do ano académico é sem dúvida a
semana da Queima das Fitas. Acontece no início de
Maio e antecede o período de estudo intenso que irá culminar nos
exames de Julho. Durante uma semana, o tempo é mesmo todo de festa e
folia. Começa a festa a uma quinta-feira com a chamada Serenata
Monumental. Nas escadarias da Sé Velha logo após as badaladas da
meia-noite na torre sineira, as guitarras iniciam os seus trinados a
que depois se irão juntar as vozes em coro. Ao redor, no largo e nas
ruelas estreitas que nele confluem, uma multidão de milhares de
pessoas escutam em silêncio o Fado de Coimbra que tradicionalmente
não é aplaudido. O silêncio da multidão impressiona pela sua
grandeza. São milhares de pessoas acotoveladas, de pé e
literalmente engarrafadas ao longo de muitas centenas de metros de
ruelas tortuosas, de becos, vielas e escadarias desta parte velha da
cidade. Uma experiência a evitar por agorafóbicos. Mal
o concerto acaba é-se arrastado pela multidão que
abandona o local. Quem tiver a sorte de ser levado pelas escadarias
acima irá desaguar no átrio da Universidade onde uma colossal festa
já se iniciou. Aqui o ritmo é marcado pelos DJs e o
ambiente é o de uma discoteca, mas gigantesca e a céu aberto, com
milhares de estudantes. Muitas barraquinhas de cerveja, bifanas e
cachorros, muita animação entre os edifícios das várias
faculdades. E lá pode
dançar-se até ao nascer do dia.
Os
dias que se seguem são invariavelmente de festa. Diariamente no
Queimódromo, é assim que se chama o espaço que fica junto à
margem esquerda do Mondego onde decorrem os concertos, grupos famosos
de músicos nacionais e internacionais desfilam todas as noites até
às tantas da madrugada. E não precisa de pagar bilhete para ouvir
os concertos. O volume do som atravessa o rio, sendo perfeitamente
audível no outro lado da cidade. Na pequena encosta que rodeia o
recinto, milhares de borlistas desfrutam do som sentados
na relva invariavelmente acompanhados de muitas latas de cerveja e
garrafões de vinho tinto. Mas
o auge da semana académica é no Domingo com o Cortejo da Queima das
Fitas. A cidade nesse dia enche-se de forasteiros. São as famílias
dos estudantes, as gentes das redondezas, antigos estudantes e
milhares de turistas que confluem na cidade. A festa começa cedo com
lançamento de foguetes, gaiteiros, tambores e filarmónicas que se
passeiam pela baixa da cidade. Na alta, em redor da Universidade,
vão-se a pouco e pouco juntando dezenas de carros alegóricos
decorados com as cores dos cursos. Os de Medicina de amarelo, Letras
de azul, Direito de vermelho, Farmácia de roxo, Psicologia de cor de
laranja e mais umas dezenas de combinações englobando todos os
cursos. Ao início da tarde, entre milhares de pessoas,
os carros carregados de estudantes e de centenas de litros de cerveja
iniciam uma descida que só irá terminar, horas depois, na Praça da
Portagem junto ao rio.
O
ambiente é de uma festa indescritível. Em cima dos carros, os
estudantes gritam, riem, bebem, borrifam com cerveja os colegas e as
gentes que ocupam as ruas. Distribuem, a quem lhes estica a mão,
latas de cerveja sem conta. A cerveja escorre nas gargantas, nos
fatos e nas ruas. As fitas agitam-se no ar entre cartolas e bengalas
dos que circulam a pé na frente dos respectivos carros. A saudação
académica é gritada vezes sem conta e um pouco por todo o lado. Os
antigos estudantes com as suas pastas e as velhas fitas misturam-se
também no cortejo. Aproveitaram este fim-de-semana para a sua
romagem anual a Coimbra e aos jantares de curso onde se revivem os
velhos tempos de estudantes. Uma mística de saudade que a passagem
por Coimbra lhes deixou. Sim, porque como lembrava o cartaz colocado
na entrada do Queimódromo: «Há momentos que só acontecem uma vez
na vida».
António
Pereira