domingo, 22 de outubro de 2017

Melilha, a última fronteira da Europa

Viajar até Melilha saindo da Europa é uma viagem de Espanha a Espanha, no dizer promocional das agências de viagem. Uma travessia de barco de cerca de cinco horas partindo de Almeria e cruzando o Mediterrâneo até à costa de África. A cidade é um enclave em Marrocos e dista poucos quilómetros da fronteira com a Argélia. Vista do mar aparece demarcada por dois enormes molhes, que delimitam o seu porto e o de Beni Ansar na cidade vizinha de Nador, descendo em anfiteatro do sopé de uma colina até terminar num promontório onde assenta uma fortaleza imponente conhecida por cidadela ou «Mellila, La Vieja», o coração histórico da cidade.

Quem chega, saindo do porto e contornando a cidadela, depara-se com a imponente Praça de Espanha que não deixa esquecer que a cidade, não obstante ser autónoma, é um território do Estado Espanhol. Uma enorme bandeira de Espanha drapeja sobre a vegetação pendente das colunas que rodeiam a praça e o enorme repuxo de água que jorra na parte central. Daqui irradiam as principais vias da cidade e por ela têm-se também acesso ao passeio marítimo que conduz às praias e a um enorme parque com centenas de palmeiras. Um pouco mais à frente fica a Praça dos Heróis de Espanha donde partem as ruas da Democracia e do Rei Juan Carlos, ruas comerciais com muitas lojas, bares e restaurantes. Nesta praça, compridos bancos de pedra que são ao mesmo tempo floreiras, surpreendem pela sua policromia ao estilo arte nova ladeando uma enorme estátua central. Nesta a figura de um legionário segurando um fuzil e um leão e alçando uma bandeira é encimado pela águia do escudo de Franco. Este monumento, de onde foram há anos retirados os símbolos mais evidentes do fascismo, vai agora ser substituído de vez por decisão das autoridades da cidade, depois de uma petição cidadã ter exigido a sua remoção. Uma decisão mais que justa, uma vez que a cidade está tristemente associada a um dos mais sangrentos conflitos da história de Espanha. Foi aqui que se iniciou o levantamento militar fascista contra a república espanhola em 1936.




Atravessar as ruas de Melilha é contemplar um nunca mais acabar de edifícios com fachadas de estilo «art déco» com o seu rigor geométrico realçado por uma profusão de elementos decorativos variados. As varandas com as enormes portadas de madeira e o ferro forjado sobressaem deslumbrando os visitantes. A seguir a Barcelona, Melilha é a cidade espanhola com mais edifícios neste estilo. Na sua traça a cidade assemelha-se a uma qualquer cidade espanhola, no entanto a presença islâmica sente-se em todos os lugares. Mulheres vestidas como em Marrocos, com a cabeça coberta por um véu, podem ver-se um pouco por toda a parte. Nas ruas o berbere e o árabe marroquino são línguas bastante utilizadas. 

A cidade dispõe de uma bonita mesquita mas também de uma sinagoga e de um templo hindu além de várias igrejas cristãs. Aliás a cidade, tem a única igreja de estilo gótico de toda a África que se situa no interior da cidadela. A convivência entre diferentes culturas parece ser a bandeira de Melilha. A cultura «amazigh» ou berbere que domina na região vizinha de Nador marcou a cidade estando na origem do seu próprio nome. Quase metade dos melilhenses tem um dialecto berbere como língua materna e jornal «Melilla Hoy» tem feito referências a uma campanha contra a extradição de dois militantes da causa berbere, detidos em Madrid, para a vizinha Argélia. Um museu dedicado às culturas berbere e sefardita recorda as suas influências nesta cidade onde se cruzaram desde a antiguidade inúmeros povos e muitas religiões. Fenícios, cartagineses, romanos, vândalos, vikings, mouros, berberes e conquistadores espanhóis por aqui viveram e muitas vezes se combateram. Um dos principais acessos à cidadela faz-se precisamente por uma enorme praça denominada das Culturas que pretende homenagear essa mesma multiculturalidade. A fortificação é imponente e a sua parte mais antiga, que começou a ser construída no Século XV, está situada num rochedo onde existiu a antiga cidade fenícia de Rusadir. A cidadela foi aumentando sucessivamente ao longo de séculos sendo composta por quatro recintos rodeados por fossos e ligados entre si por pontes. No seu interior existem hoje um conjunto habitacional denominado «El Pueblo» e vários museus. Os limites da cidade com Marrocos foram traçados a tiro de canhão, precisamente a partir de dois dos fortes da cidadela, em finais do século XIX. Catorze disparos de um canhão com uma inclinação de 21 graus delimitaram os 12,5 quilómetros quadrados da cidade.

As fronteiras de Melilha continuam no entanto a assumir um carácter marcadamente violento e trágico, ainda que os velhos canhões se tenham calado para sempre. São a última fronteira terrestre da União Europeia com África. A cidade encontra-se totalmente cercada por um sistema de três gradeamentos metálicos justapostos com uma altura de seis metros encimados por arame farpado que foi recentemente reforçado com espigões metálicos altamente cortantes. O gradeamento do meio tem um desenho tridimensional de forma a dificultar a progressão no seu interior. Ao longo deste gradeamento triplo que se estende por quilómetros polícias, torres de vigia e aparelhos de vigilância modernos e ultra sofisticados asseguram que ninguém o poderá ultrapassar sem ser detectado. Muitos já morreram ao tentar atravessá-lo. O último muro da Europa depois de o de Berlim se ter desmoronado em 1989. Mesmo vista à distância a cerca provoca horror, repulsa e uma sensação de se estar dentro de uma enorme prisão. Não é possível apreciar a beleza do fim do dia, com o sol a declinar lentamente sobre a cidade, sem a lembrança que num monte à nossa frente permanecem centenas de homens, oriundos da África subsaariana, escondidos, desesperados, numa situação miserável e permanente acossados pelas polícias marroquinas e espanholas. Melilha transporta consigo o destino trágico de ser a última fronteira da Europa. Uma fronteira que ninguém parece querer ver.

António Pereira