domingo, 11 de agosto de 2013

Regresso pelo mar

Não sabia como regressar à Guiné-Bissau. Um amigo levara-me de mota através da selva, cruzando a fronteira, para a Guiné-Conacry, até ao porto de Kamsar, mas não faria a viagem de volta. Sugeriu que falássemos com o chefe do porto, que talvez me conseguisse o laissez-passer necessário para passar a fronteira, e então víamos se haveria algum barco para a Guiné-Bissau.
- “Ele é meu mano, não vai ser um problema”.

Kamsar é um lugar estranho. O porto e o centro da cidade, concessões de uma empresa americana de exploração de bauxite, vivem à sombra dos edifícios fumegantes da companhia que a explora. À volta do caminho de ferro que escoa o minério das montanhas para a costa, de onde segue para os Estados-Unidos, fez-se uma cidade à mão, que vai absorvendo guineenses de outras partes da região em busca de uma oportunidade.

Pelas ruas de pó e de palmeiras, homens de túnicas reúnem-se para começar a rezar, obedecendo ao muezzin. Passamos de mota quando já todos estão prostrados, em vários lugares à beira da estrada, e a cidade parece adormecer voltada para Meca. Chegamos pouco depois ao porto, tomado pela azáfama. O “mano” do meu amigo entrega-me um laissez-passer, conforme previsto. Barcos para a Guiné-Bissau não há, mas sim para perto da fronteira, e depois não há-de ser difícil arranjar uma boleia de mota. De acordo com uns, o barco partiria de madrugada às 4, segundo outros, às 5; outros ainda dizem que não haverá barco.

Tentar não custa. Chego ao porto pelas 4, ainda de noite, para evitar surpresas e vou até ao cais, onde um grande grupo de pessoas já transporta todo o tipo de mercadorias, em todas as direcções. No escuro, chapinham embarcações. 
 - Barco para a fronteira com a Guiné-Bissau? Sim, é por ali - apontam na direcção do mar.
Um estreito vão de pedra segue pelo mar dentro e distinguem-se uns vultos de barcos pouco depois. Sigo nessa direcção, de lanterna na mão e mochila cheia de comida, tentando manter o equilíbrio. O caminho de pedra desaparece subitamente debaixo do mar, permanecendo visível apenas para os pés. Avanço com mais cuidado e lentamente.Tentando que um mês de comida não se afogue já ali.
O barco ganha finalmente forma a partir do escuro, e eu agarro-me a ele com um alívio que não dura muito quando percebo que é ali que passarei as próximas horas.

Muitas pessoas já se amontoam dentro da embarcação, de 10 metros, por cima e ao lado de sacos de arroz, bicicletas, cestos, bagagens. Sem querer acreditar, tento perceber se é a única opção de viagem. É.

Salto com a mochila lá para dentro, onde já não havia lugar, mas onde continuam a chegar pessoas carregadas. Os pés molham-se no fundo do barco, cheio de água. Quantas horas de viagem? Uns dizem 4 horas, outros 6... 














Uma hora depois de mais pessoas e objectos, zarpamos, numa semi-claridade. Um homem ocupa de imediato a função que teria até ao fim da viagem: pega num balde e começa a recolher a água do fundo do barco, para a devolver ao mar. Assim que nos afastamos de Kamsar, uma paisagem imaculada surge com a manhã. Praias desertas de areia branca, rodeadas de florestas e palmeiras fazem-me esquecer momentaneamente a vulnerabilidade da madeira flutuante que me transporta. Só o motor e as conversas entre os passageiros interrompem a mansa manhã tropical. A viagem arrasta-se por muitas horas e o sol começa a queimar. A água de beber acaba-se, o homem do balde cansa-se. As 4 ou 5 horas já passaram há muito, ou não desconfiasse eu que a percepção africana do tempo me pregava mais uma partida.

Entramos finalmente por uma das mil rias de margens de mangal desta zona de África.
As paisagens e conversas distraem do sol quente, que vai no entanto enfraquecendo. Pratico as poucas palavras de soso que conheço, um pouco de francês, e finalmente crioulo, com uma mulher que ia para o mesmo porto. Um pouco de conversa revela que é a tia de um dos meus amigos de Gadamael. Parece que fico assim mais perto.

O sol já caminhou quase tanto como navegámos, e prepara-se para desaparecer. Por fim o barco chega. A viagem durou 13 horas. À nossa frente uma zona aberta por entre um mangal. Saltamos um a um, para a lama, e caminhamos para uma tabanca próxima, numa longa fila de homens, mulheres, crianças e bagagens. A tarefa de arranjar uma boleia de mota para a Guiné-Bissau não foi difícil, está apenas a 10 quilómetros.

Finalmente, Gadamael! E uma muito agradável recepção: “Já estávamos preocupados”.
Estava em casa.


Fernando