Não sabia
como regressar à Guiné-Bissau. Um amigo levara-me de mota através
da selva, cruzando a fronteira, para a Guiné-Conacry, até ao porto
de Kamsar, mas não faria a viagem de volta. Sugeriu que falássemos
com o chefe do porto, que talvez me conseguisse o laissez-passer
necessário para passar a fronteira, e então víamos se haveria
algum barco para a Guiné-Bissau.
- “Ele é
meu mano, não vai ser um problema”.
Kamsar é
um lugar estranho. O porto e o centro da cidade, concessões de uma
empresa americana de exploração de bauxite, vivem à sombra dos
edifícios fumegantes da companhia que a explora. À volta do caminho
de ferro que escoa o minério das montanhas para a costa, de onde
segue para os Estados-Unidos, fez-se uma cidade à mão, que vai
absorvendo guineenses de outras partes da região em busca de uma
oportunidade.
Pelas ruas
de pó e de palmeiras, homens de túnicas reúnem-se para começar a
rezar, obedecendo ao muezzin. Passamos de mota quando já
todos estão prostrados, em vários lugares à beira da estrada, e a
cidade parece adormecer voltada para Meca. Chegamos
pouco depois ao porto, tomado pela azáfama. O “mano” do meu
amigo entrega-me um laissez-passer, conforme previsto. Barcos
para a Guiné-Bissau não há, mas sim para perto da fronteira, e
depois não há-de ser difícil arranjar uma boleia de mota. De
acordo com uns, o barco partiria de madrugada às 4, segundo outros,
às 5; outros ainda dizem que não haverá barco.
Tentar não
custa. Chego ao porto pelas 4, ainda de noite, para evitar surpresas
e vou até ao cais, onde um grande grupo de pessoas já transporta
todo o tipo de mercadorias, em todas as direcções. No escuro,
chapinham embarcações.
- Barco
para a fronteira com a Guiné-Bissau? Sim, é por ali - apontam na
direcção do mar.
Um
estreito vão de pedra segue pelo mar dentro e distinguem-se uns
vultos de barcos pouco depois. Sigo nessa direcção, de lanterna na
mão e mochila cheia de comida, tentando manter o equilíbrio. O
caminho de pedra desaparece subitamente debaixo do mar, permanecendo
visível apenas para os pés. Avanço com mais cuidado e
lentamente.Tentando que um mês de comida não se afogue já ali.
O barco
ganha finalmente forma a partir do escuro, e eu agarro-me a ele com
um alívio que não dura muito quando percebo que é ali que passarei
as próximas horas.
Muitas
pessoas já se amontoam dentro da embarcação, de 10 metros, por
cima e ao lado de sacos de arroz, bicicletas, cestos, bagagens. Sem
querer acreditar, tento perceber se é a única opção de viagem. É.
Salto com
a mochila lá para dentro, onde já não havia lugar, mas onde
continuam a chegar pessoas carregadas. Os pés molham-se no fundo do
barco, cheio de água. Quantas horas de viagem? Uns dizem 4 horas,
outros 6...
Uma hora depois de mais pessoas e objectos, zarpamos, numa semi-claridade. Um homem ocupa de imediato a função que teria até ao fim da viagem: pega num balde e começa a recolher a água do fundo do barco, para a devolver ao mar. Assim que nos afastamos de Kamsar, uma paisagem imaculada surge com a manhã. Praias desertas de areia branca, rodeadas de florestas e palmeiras fazem-me esquecer momentaneamente a vulnerabilidade da madeira flutuante que me transporta. Só o motor e as conversas entre os passageiros interrompem a mansa manhã tropical. A viagem arrasta-se por muitas horas e o sol começa a queimar. A água de beber acaba-se, o homem do balde cansa-se. As 4 ou 5 horas já passaram há muito, ou não desconfiasse eu que a percepção africana do tempo me pregava mais uma partida.
Entramos
finalmente por uma das mil rias de margens de mangal desta zona de
África.
As
paisagens e conversas distraem do sol quente, que vai no entanto
enfraquecendo. Pratico as poucas palavras de soso que conheço,
um pouco de francês, e finalmente crioulo, com uma mulher que ia
para o mesmo porto. Um pouco de conversa revela que é a tia de um
dos meus amigos de Gadamael. Parece que fico assim mais perto.
O sol já
caminhou quase tanto como navegámos, e prepara-se para desaparecer.
Por fim o barco chega. A viagem durou 13 horas. À nossa frente uma
zona aberta por entre um mangal. Saltamos um a um, para a lama, e
caminhamos para uma tabanca próxima, numa longa fila de homens,
mulheres, crianças e bagagens. A tarefa de arranjar uma boleia de
mota para a Guiné-Bissau não foi difícil, está apenas a 10
quilómetros.
Finalmente,
Gadamael! E uma muito agradável recepção: “Já estávamos
preocupados”.
Estava em
casa.
Fernando