“O sonho comanda a vida”
Frase do poema Pedra Filosofal de António Gedeão, pseudónimo de Rómulo de Carvalho.
Num dia decisivo para o
futuro político de Portugal, 4 de outubro de 2015, fui votar cinco
minutos depois de as urnas abrirem. Tanta questão fiz em exercer o
meu direito pois não suportava o governo de coligação que lá
estava. Armado em primeiro e melhor eleitor do bairro e arredores,
pelas oito e quinze da manhã já votara e estava então no meu carro
Skoda Fabia pela estrada fora até à
Escócia. Pela frente, aguardavam-me dois mil e oitocentos
quilómetros e quase quarenta horas seguidas de condução. Apesar da
chuva que se atravessou no caminho e do nevoeiro que encontrei nos
montes de Portugal e de Espanha, ia conduzindo com sucesso. A1, A23 e A25 com as suas complicadas portagens automáticas para quem não tem "via verde", Vilar Formoso, Salamanca, Burgos e a região basca, esta última onde a
geografia tanto exaure o condutor, não obstante o esplendor natural
da paisagem. De repente já estava no sul de França por onde se respirava tranquilidade e melhor clima metereológico e político.
Às tantas detinha-me no facto de alguns dos sinais de trânsito estarem
tapados com plástico escuro como se estivessem por estrear. Primeiro
pensei ser uma brincadeira para contrariar os limites de velocidade
mas depois ganhou consistência a tese de que seria devido a obras
recentes na via. O sol punha-se quando cruzava esta terra e a
restante França, atravessei-a com um firmamento estrelado por cima de
mim. Auto-estradas grandes e bem definidas mas despidas de viaturas,
tirando alguns camiões. Por vezes alguns carros colavam-se no meu
encalço talvez para sermos vários na escuridão, não fosse o diabo
tecê-las. Tudo isto me parecia tão animalesco e natural quanto os
cardumes de peixes que se juntam uns aos outros no oceano para melhor
sobreviverem, ou os pequenos que se encobrem nas caudas ou dorso dos
tubarões e baleias. Os camiões e os carros que por vezes via junto
a eles assemelhavam-se. Bem, somos animais e não há como escapar
por vezes. Para me manter acordado pela madrugada fora liguei os
ventiladores no máximo com frio e direcionados para a cara. A rádio
estava com volume elevado e a passar notícias, o mais poli-tónica
possível, e claro, ia parando nas estações de serviço ou "aire"
em Francês para tomar café ou o mais semelhante que eles lá
tivessem. A última localidade por onde passei antes da aurora despontar
foi Rouen, um conjunto de sarilhos por não ter radial e a auto-estrada desembocar no centro da vila. De lá deriva a seguinte auto-estrada por onde tinha que
seguir, até Callais. Numa estação de serviço parei para perguntar
direções e de novo tomei café. Aí encaminharam-me de volta à
estrada por onde já seguia, e estava certo portanto! Cerca de 300km
depois, já imerso na Alta Normandia, os primeiros raios de luz
banhavam o asfalto e podia deslindar na paisagem várias turbinas eólicas a
girar. Alguns quilómetros adiante, logo depois de uma curva, avistei um
grupo de cerca de vinte refugiados na berma da auto-estrada e a pedirem
boleia, calculei eu. Talvez fossem também cruzar a estrada para
ficarem mais perto de um ponto de acesso escondido ao túnel do
comboio. Mas a surpresa, a velocidade da viatura e a impossibilidade
de voltar para trás não me permitiram dar-lhes transporte. Isso
poderia trazer-me problemas na fronteira também. Sim porque ela
ainda existe em plena União Europeia e ainda para mais, quando ela
já está claramente definida pela natureza. Uma ilha já tem
fronteiras que cheguem!
Callais. Coquelles.
Euro-túnel. A bilheteira. Uma nota preta para ter um título
flexível pois viajava sem regresso marcado. A alfândega francesa.
Tudo OK. Fila para a do Reino Unido e quando chegou a minha vez
vieram as perguntas desagradáveis. Entre o funcionário que estava à
janela de um posto parecido com o de uma portagem normal, e o vidro
desse pequeno cubículo emergiu de um modo pernicioso e repentino um
autêntico beef tingido de amarelo no seu cabelo e munido da
tal arrogância que os carateriza, não sendo contudo essa a verdade
geral, mas este funcionário alfandegário encaixava-se demasiado bem
nesse estereótipo. What do you carry in the back? Who are
you driving with? Is this your car? When did you buy it? How old are
you? What are you going to do in the UK? Are you a
musician? Já não podia mais com tanta impertinência,
arrogância e desadequação conjunta. Esta besta interpôs-se no
trabalho do seu colega para realizar isto? A menos que fosse o jogo
da “besta” boa e da “besta” má, pois foi o que pareceu. Por
trás desta viagem está um sonho de estudar música e áudio no
Reino Unido, por lá existir uma boa oferta de cursos nesta área. Se
bem que isso era mais verdade há uns quinze anos atrás. Hoje em
dia, em muitos aspetos Portugal ou o ensino à distância têm muitas
soluções nesta área. Contudo, um curso acessível ia começar
nesse dia, segunda-feira ao fim do dia em Glasgow. A inscrição já
tinha sido tratada há dias atrás e só faltava mesmo eu estar lá.
Para aproveitar mais o tempo em que lá estava, levava comigo um
conjunto de instrumentos para música eletrónica: máquinas de
ritmos, sintetizadores, a guitarra e vários discos de vinyl.
Com o inquérito para trás e uma raiva desmedida por aquele país
estar fora por opção própria, e excessiva, do espaço Shengen,
a estrada aguardava-me até onde quisesse ir. Pelas nove da manhã
parei para trocar euros por libras e respirar fundo antes de me
aventurar mais na condução à esquerda. A propósito, cuja
dificuldade é um mito, alimentado pelas autoridades locais que
insistem nisto para complicar e diferenciar o seu território e modo
de viver dos demais povos europeus. Todos somos iguais contudo e esta
não é mais do que uma bem visível face da política, orgulho e da
arrogância que carateriza as terras de sua majestade. Há gente boa
claro contudo, e tive a felicidade de conhecer pessoas impecáveis
por lá. Agora as medidas políticas e o sentimento maioritário no
povo são demasiado chauvinistas e incomodativos para com os
visitantes.
Pé na estrada pela M20
fora, de Dover até aos subúrbios de Londres onde me iria cruzar com
a M25, circular externa da metrópole europeia que hoje alberga quase
dez milhões de pessoas e de onde derivam várias estradas para os
restantes cantos do país. Ao início da entrada em solo britânico,
as torrentes de camiões, a maioria de matrícula estrangeira, já
impunham respeito, mas ao entrar na radial, a chusma de carros que se
juntaram a mim começava a ser e tornou-se mesmo avassaladora. Não
sei se por não ter dormido ou se por ser simplesmente aquela uma
situação ridícula, estúpida e incompreensível mas fiquei preso
no trânsito desde as onze da manhã de uma segunda-feira até às
três da tarde, na radial da maior cidade europeia hoje em dia. E
fazerem uma nova estrada? Ou aumentarem, ainda mais, o número de
faixas. Assim desconstruia o mito de que todos os britânicos entram
muito cedinho no emprego e fazem tudo bem e by the book.
Errado! Àquela hora não era possível que fosse diferente. Enquanto
o tempo passava e os meus olhos pestanejavam com cada vez mais peso e
morosidade, ia também ouvindo o vasto conjunto de boas rádios que
pululam o espetro radiofónico local. A Rinse e as suas sessões de
grime, rap e dubstep, assim como outras
semelhantes que descobri. E só este pequeno detalhe já fazia o meu
dia e valer a pena estar ali a viver aquela experiência traumática
do trânsito em Londres. Duas horas depois de estar literalmente
bloqueado na estrada, optei por uma saída desconhecida, que levava a
um centro comercial, ou antes uma área de serviço gigante. O mais
interessante é que de lá não poda ir para mais qualquer outro lado
pois não havia saída simplesmente! Aquele lugar era contudo nos
subúrbios de Londres. Um atalho mais curto ou um caminho sem aquela
avalanche de motores estava fora de questão. Só me restava parar,
sair, esticar as pernas, e porque já era hora de almoço, comer
algo. A comida já se apresentava de má qualidade e pouco mais me
restava escolher do que o KFC. Fast-food, fast-food, fast-food.
O que mais estava à mão de semear naquele país. Se bem que cada
vez mais a cultura gastronómica se compõe de culinárias do mundo o
que é divinal claro, mas isso sai sempre caro ao
cliente, ainda para mais em
Londres onde o custo de vida
é inflacionado a cada dia que passa tamanho é o aumento da procura
numa urbe onde a oferta de serviços se mantém.
A única explicação que encontrei para aquele bloqueio seria o
decorrer dos campeonatos de râguebi ali perto de onde me encontrava,
percebi em conversa com uma senhora inglesa também ela bloqueada no
parque de estacionamento e dentro do seu carro. Pelas
15H estava de novo a circular pela M25 e a entrar na M6, auto-estrada
que me levou até ao destino. Não havia que enganar, ou “can't
miss it” como dita a user-friendship daquelas
bandas, e ainda bem que assim é! O
crepúsculo chegou para encobrir a paisagem quando estava a vadear
Manchester. Quando cheguei à
Escócia já era noite cerrada, e a Glasgow era já onze. Bolas, e a
primeira aula já tinha acabado. Fiz o melhor que pude, e podia
culpar os ingleses por isso, que foi algo que os escoceses adoraram
ouvir!
O
curso de música, um
sonho, o meu carro,
um hotel perto da escola, o frio a chegar, eu instalado
naquele quarto que tinha criteriosamente escolhido por telefone antes
de ir, voltado
a sul com luz e espaçoso, o
staff simpático, a
vibe musical de
Glasgow, a sua familiaridade, e o tamanho razoável para nela habitar
e comutar.
O metro circular duma
cidade algo que não vira antes, matar
as saudades da gastronomia portuguesa na cadeia de restaurantes
Nando's, o
distanciamento tipicamente
nórdico dos locais, o bairro
onde fiquei, Ibrox, por alguns locais reputado como um subúrbio algo
estranho, pois era habitado por muito imigrantes. O hotel que
albergava refugiados calculo eu que estivessem a ser integrados na
sociedade pelo governo local. O
estádio dos Rangers que estava a duzentos metros do hotel e que
impunha respeito assim como as suas claques que em dia de jogo
espalhavam autocolantes, queimavam caixotes do lixo e obrigavam uma
parte do comércio a fechar mais cedo. E
o carro cansado da viagem mas agora bem resguardado com um lugar no
parque privativo do hotel. Todas estas foram impressões enquanto lá estive. As cinco semanas da minha estadia passaram depressa. Por vezes atingia-me a desrealização do porquê de
tudo aquilo. A música, a viagem, o sonho. E ia funcionando, aos
poucos. Eu ia
explorando as caixas de ritmos que levava comigo e criando batidas,
inspirado nos mestres brasileiros, e
carregava as canções na internet
para partilhar, apenas porque sim. Era o meu sonho.
www.soundcloud.com/joaocarlos1
O
alojamento estava a tornar-se caro mas os contratos de arrendamento
exigem a duração mínima de seis meses o que era inadequado ao que
pretendia. Para ter locais a
tentar dirimir esta questão aconselhei-me junto da instituição de
ensino para juntos encontrarmos solução, sendo que o que sucedeu
foi um e-mail enviado para todos os alunos por uma secretária do
diretor a perguntar se alguém poderia ceder um sofá até Dezembro a
um estudante, para evitar que ele dormisse num parque de
estacionamento. Ridículo, jocoso e muito pouco profissional. O ensino era
bom, mas as instalações não, e esta fora a gota de água. Como
tal, por já ter aprendido bastante para estar satisfeito, ainda para mais depois de um
fim-de-semana em Londres num curso intensivo de Ableton Live para
DJs, e por não ter pagar mais do que a primeira mensalidade, o destino impelia-me para sul. Quando chegasse ia redigir uma carta de reclamação. A chuva apoderava-se de Glasgow,
depois de a ela ter trazido
sol, segundo me diziam, pois outubro fora bastante equilibrado em dias estivais e temperaturas tépidas. Com
dois dos estudantes combinei ir tocar para a rua, que é um hábito
no centro da cidade de Glasgow, e assim foi. Em
duas horas, duas libras. Nada mau! Mas o frio já se fazia sentir na
Buchanan Street, e Portugal
aguardava-me, agora
com novos
ensinamentos, paisagens
vistas, pessoas cruzadas
e experiências vividas.
Lisboa chama-me mas a viagem agora será com uma paragem pelo meio.
João A.
Lisboa chama-me mas a viagem agora será com uma paragem pelo meio.
João A.