sexta-feira, 13 de novembro de 2015

De Portugal à Escócia em Carro

“O sonho comanda a vida”
Frase do poema Pedra Filosofal de António Gedeão, pseudónimo de Rómulo de Carvalho.


Num dia decisivo para o futuro político de Portugal, 4 de outubro de 2015, fui votar cinco minutos depois de as urnas abrirem. Tanta questão fiz em exercer o meu direito pois não suportava o governo de coligação que lá estava. Armado em primeiro e melhor eleitor do bairro e arredores, pelas oito e quinze da manhã já votara e estava então no meu carro Skoda Fabia pela estrada fora até à Escócia. Pela frente, aguardavam-me dois mil e oitocentos quilómetros e quase quarenta horas seguidas de condução. Apesar da chuva que se atravessou no caminho e do nevoeiro que encontrei nos montes de Portugal e de Espanha, ia conduzindo com sucesso. A1, A23 e A25 com as suas complicadas portagens automáticas para quem não tem "via verde", Vilar Formoso, Salamanca, Burgos e a região basca, esta última onde a geografia tanto exaure o condutor, não obstante o esplendor natural da paisagem. De repente já estava no sul de França por onde se respirava tranquilidade e melhor clima metereológico e político. Às tantas detinha-me no facto de alguns dos sinais de trânsito estarem tapados com plástico escuro como se estivessem por estrear. Primeiro pensei ser uma brincadeira para contrariar os limites de velocidade mas depois ganhou consistência a tese de que seria devido a obras recentes na via. O sol punha-se quando cruzava esta terra e a restante França, atravessei-a com um firmamento estrelado por cima de mim. Auto-estradas grandes e bem definidas mas despidas de viaturas, tirando alguns camiões. Por vezes alguns carros colavam-se no meu encalço talvez para sermos vários na escuridão, não fosse o diabo tecê-las. Tudo isto me parecia tão animalesco e natural quanto os cardumes de peixes que se juntam uns aos outros no oceano para melhor sobreviverem, ou os pequenos que se encobrem nas caudas ou dorso dos tubarões e baleias. Os camiões e os carros que por vezes via junto a eles assemelhavam-se. Bem, somos animais e não há como escapar por vezes. Para me manter acordado pela madrugada fora liguei os ventiladores no máximo com frio e direcionados para a cara. A rádio estava com volume elevado e a passar notícias, o mais poli-tónica possível, e claro, ia parando nas estações de serviço ou "aire" em Francês para tomar café ou o mais semelhante que eles lá tivessem. A última localidade por onde passei antes da aurora despontar foi Rouen, um conjunto de sarilhos por não ter radial e a auto-estrada desembocar no centro da vila. De lá deriva a seguinte auto-estrada por onde tinha que seguir, até Callais. Numa estação de serviço parei para perguntar direções e de novo tomei café. Aí encaminharam-me de volta à estrada por onde já seguia, e estava certo portanto! Cerca de 300km depois, já imerso na Alta Normandia, os primeiros raios de luz banhavam o asfalto e podia deslindar na paisagem várias turbinas eólicas a girar. Alguns quilómetros adiante, logo depois de uma curva, avistei um grupo de cerca de vinte refugiados na berma da auto-estrada e a pedirem boleia, calculei eu. Talvez fossem também cruzar a estrada para ficarem mais perto de um ponto de acesso escondido ao túnel do comboio. Mas a surpresa, a velocidade da viatura e a impossibilidade de voltar para trás não me permitiram dar-lhes transporte. Isso poderia trazer-me problemas na fronteira também. Sim porque ela ainda existe em plena União Europeia e ainda para mais, quando ela já está claramente definida pela natureza. Uma ilha já tem fronteiras que cheguem!


Callais. Coquelles. Euro-túnel. A bilheteira. Uma nota preta para ter um título flexível pois viajava sem regresso marcado. A alfândega francesa. Tudo OK. Fila para a do Reino Unido e quando chegou a minha vez vieram as perguntas desagradáveis. Entre o funcionário que estava à janela de um posto parecido com o de uma portagem normal, e o vidro desse pequeno cubículo emergiu de um modo pernicioso e repentino um autêntico beef tingido de amarelo no seu cabelo e munido da tal arrogância que os carateriza, não sendo contudo essa a verdade geral, mas este funcionário alfandegário encaixava-se demasiado bem nesse estereótipo. What do you carry in the back? Who are you driving with? Is this your car? When did you buy it? How old are you? What are you going to do in the UK? Are you a musician? Já não podia mais com tanta impertinência, arrogância e desadequação conjunta. Esta besta interpôs-se no trabalho do seu colega para realizar isto? A menos que fosse o jogo da “besta” boa e da “besta” má, pois foi o que pareceu. Por trás desta viagem está um sonho de estudar música e áudio no Reino Unido, por lá existir uma boa oferta de cursos nesta área. Se bem que isso era mais verdade há uns quinze anos atrás. Hoje em dia, em muitos aspetos Portugal ou o ensino à distância têm muitas soluções nesta área. Contudo, um curso acessível ia começar nesse dia, segunda-feira ao fim do dia em Glasgow. A inscrição já tinha sido tratada há dias atrás e só faltava mesmo eu estar lá. Para aproveitar mais o tempo em que lá estava, levava comigo um conjunto de instrumentos para música eletrónica: máquinas de ritmos, sintetizadores, a guitarra e vários discos de vinyl. Com o inquérito para trás e uma raiva desmedida por aquele país estar fora por opção própria, e excessiva, do espaço Shengen, a estrada aguardava-me até onde quisesse ir. Pelas nove da manhã parei para trocar euros por libras e respirar fundo antes de me aventurar mais na condução à esquerda. A propósito, cuja dificuldade é um mito, alimentado pelas autoridades locais que insistem nisto para complicar e diferenciar o seu território e modo de viver dos demais povos europeus. Todos somos iguais contudo e esta não é mais do que uma bem visível face da política, orgulho e da arrogância que carateriza as terras de sua majestade. Há gente boa claro contudo, e tive a felicidade de conhecer pessoas impecáveis por lá. Agora as medidas políticas e o sentimento maioritário no povo são demasiado chauvinistas e incomodativos para com os visitantes.


Ementa de Sobremesas da cadeia de restaurantes Nando's, com inspiração em Portugal.

Pé na estrada pela M20 fora, de Dover até aos subúrbios de Londres onde me iria cruzar com a M25, circular externa da metrópole europeia que hoje alberga quase dez milhões de pessoas e de onde derivam várias estradas para os restantes cantos do país. Ao início da entrada em solo britânico, as torrentes de camiões, a maioria de matrícula estrangeira, já impunham respeito, mas ao entrar na radial, a chusma de carros que se juntaram a mim começava a ser e tornou-se mesmo avassaladora. Não sei se por não ter dormido ou se por ser simplesmente aquela uma situação ridícula, estúpida e incompreensível mas fiquei preso no trânsito desde as onze da manhã de uma segunda-feira até às três da tarde, na radial da maior cidade europeia hoje em dia. E fazerem uma nova estrada? Ou aumentarem, ainda mais, o número de faixas. Assim desconstruia o mito de que todos os britânicos entram muito cedinho no emprego e fazem tudo bem e by the book. Errado! Àquela hora não era possível que fosse diferente. Enquanto o tempo passava e os meus olhos pestanejavam com cada vez mais peso e morosidade, ia também ouvindo o vasto conjunto de boas rádios que pululam o espetro radiofónico local. A Rinse e as suas sessões de grime, rap e dubstep, assim como outras semelhantes que descobri. E só este pequeno detalhe já fazia o meu dia e valer a pena estar ali a viver aquela experiência traumática do trânsito em Londres. Duas horas depois de estar literalmente bloqueado na estrada, optei por uma saída desconhecida, que levava a um centro comercial, ou antes uma área de serviço gigante. O mais interessante é que de lá não poda ir para mais qualquer outro lado pois não havia saída simplesmente! Aquele lugar era contudo nos subúrbios de Londres. Um atalho mais curto ou um caminho sem aquela avalanche de motores estava fora de questão. Só me restava parar, sair, esticar as pernas, e porque já era hora de almoço, comer algo. A comida já se apresentava de má qualidade e pouco mais me restava escolher do que o KFC. Fast-food, fast-food, fast-food. O que mais estava à mão de semear naquele país. Se bem que cada vez mais a cultura gastronómica se compõe de culinárias do mundo o que é divinal claro, mas isso sai sempre caro ao cliente, ainda para mais em Londres onde o custo de vida é inflacionado a cada dia que passa tamanho é o aumento da procura numa urbe onde a oferta de serviços se mantém. A única explicação que encontrei para aquele bloqueio seria o decorrer dos campeonatos de râguebi ali perto de onde me encontrava, percebi em conversa com uma senhora inglesa também ela bloqueada no parque de estacionamento e dentro do seu carro. Pelas 15H estava de novo a circular pela M25 e a entrar na M6, auto-estrada que me levou até ao destino. Não havia que enganar, ou “can't miss it” como dita a user-friendship daquelas bandas, e ainda bem que assim é! O crepúsculo chegou para encobrir a paisagem quando estava a vadear Manchester. Quando cheguei à Escócia já era noite cerrada, e a Glasgow era já onze. Bolas, e a primeira aula já tinha acabado. Fiz o melhor que pude, e podia culpar os ingleses por isso, que foi algo que os escoceses adoraram ouvir!

O curso de música, um sonho, o meu carro, um hotel perto da escola, o frio a chegar, eu instalado naquele quarto que tinha criteriosamente escolhido por telefone antes de ir, voltado a sul com luz e espaçoso, o staff simpático, a vibe musical de Glasgow, a sua familiaridade, e o tamanho razoável para nela habitar e comutar. O metro circular duma cidade algo que não vira antes, matar as saudades da gastronomia portuguesa na cadeia de restaurantes Nando's, o distanciamento tipicamente nórdico dos locais, o bairro onde fiquei, Ibrox, por alguns locais reputado como um subúrbio algo estranho, pois era habitado por muito imigrantes. O hotel que albergava refugiados calculo eu que estivessem a ser integrados na sociedade pelo governo local. O estádio dos Rangers que estava a duzentos metros do hotel e que impunha respeito assim como as suas claques que em dia de jogo espalhavam autocolantes, queimavam caixotes do lixo e obrigavam uma parte do comércio a fechar mais cedo. E o carro cansado da viagem mas agora bem resguardado com um lugar no parque privativo do hotel. Todas estas foram impressões enquanto lá estive. As cinco semanas da minha estadia passaram depressa. Por vezes atingia-me a desrealização do porquê de tudo aquilo. A música, a viagem, o sonho. E ia funcionando, aos poucos. Eu ia explorando as caixas de ritmos que levava comigo e criando batidas, inspirado nos mestres brasileiros, e carregava as canções na internet para partilhar, apenas porque sim. Era o meu sonho. www.soundcloud.com/joaocarlos1

O alojamento estava a tornar-se caro mas os contratos de arrendamento exigem a duração mínima de seis meses o que era inadequado ao que pretendia. Para ter locais a tentar dirimir esta questão aconselhei-me junto da instituição de ensino para juntos encontrarmos solução, sendo que o que sucedeu foi um e-mail enviado para todos os alunos por uma secretária do diretor a perguntar se alguém poderia ceder um sofá até Dezembro a um estudante, para evitar que ele dormisse num parque de estacionamento. Ridículo, jocoso e muito pouco profissional. O ensino era bom, mas as instalações não, e esta fora a gota de água. Como tal, por já ter aprendido bastante para estar satisfeito, ainda para mais depois de um fim-de-semana em Londres num curso intensivo de Ableton Live para DJs, e por não ter pagar mais do que a primeira mensalidade, o destino impelia-me para sul. Quando chegasse ia redigir uma carta de reclamação. A chuva apoderava-se de Glasgow, depois de a ela ter trazido sol, segundo me diziam, pois outubro fora bastante equilibrado em dias estivais e temperaturas tépidas. Com dois dos estudantes combinei ir tocar para a rua, que é um hábito no centro da cidade de Glasgow, e assim foi. Em duas horas, duas libras. Nada mau! Mas o frio já se fazia sentir na Buchanan Street, e Portugal aguardava-me, agora com novos ensinamentos, paisagens vistas, pessoas cruzadas e experiências vividas.

Lisboa chama-me mas a viagem agora será com uma paragem pelo meio.
João A.