terça-feira, 29 de setembro de 2015

Sónia

E se fosse contigo? E se tivesses saído de casa para comprar tabaco, já noite alta, mesmo sabendo que estás em África e não podes sair sozinho porque o teu Chefe de Missão não permite, por razões de segurança, e entrasses num bar, comprasses o teu Marlboro branco que aqui se vende ao preço da chuva e já de saída escutasses uma rapariga que te chama de uma mesa e te pede um isqueiro e então lhe acendesses o cigarro como cavalheiro branco que és, e depois te sentisses puxado pelo braço, convidado a sentar e te sentasses mesmo. Um pouco de conversa, que mal tem? Para ti que até já estás farto de falar sempre as mesmas conversas com os colegas e os outros estrangeiros nas reuniões e reuniões que se sucedem sem propósito nem préstimo, as mais das vezes só para cumprir agenda e calendário.

Darias uns dedos de conversa não é? Não muitos claro, porque sabes que não podes andar a esta hora na rua, já noite alta, mas trocar o número de telemóvel para ligar mais tarde é rápido. E imagina que estás fascinado por África, que a rapariga te agradou nas feições, no trato, naquela cor preta e imensa de ébano. Regressas ao teu hotel, ninguém deu por nada, vais-te deitar e depois adormeces a pensar nela. Na Sónia que só te disse esse nome.


E se de manhã te tivesses acordado a pensar nela, a pensar em ligar-lhe? Até porque é fim de semana e tens mais uma «liberdadezinha» de te escapares do teu grupo e de te perderes na cidade. E se ligasses e ela atendesse logo? Que sim, que pode ser e marcas para a Império aquela pastelaria fina que fica mesmo em frente ao Palácio do Presidente, sítio mais que seguro porque até estão lá militares das forças de manutenção de paz das Nações Unidas, nos seus carros de combate «fashion», brancos estampados de United Nations e assim o teu chefe nem se importa que andes por ali. E ficas à espera da rapariga, a observar tudo. Os brancos que ocupam a maioria dos lugares, alguns negros, os táxis pintados de branco e azul que vão chegando e descarregam mais estrangeiros porque na Estação das Chuvas é assim, fica difícil deslocarem-se e então para evitar as ruas esburacadas, as poças de água que enchem os buracos, as lamas, as chuvadas torrenciais, os charcos e torrentes que escorrem, tu e os outros que até têm dinheiro, andam mais de táxi.

Foto de autor desconhecido.
E a Sónia chega. Atravessa o salão. Avança para a tua mesa. Linda num decote sensual encimado por aquele sorriso largo e limpidamente branco. E beija-te. Ali em frente de todos como se já fosse tua. Os olhos caem todos em cima de ti. Ou dela? E conversam. «Meu pai era português mas nunca me registou, saiu daqui tinha eu cinco anos. Era militar. A minha mãe era de etnia Papel.» «Nasci aqui em Bissau. Tenho duas irmãs em Portugal.» «Aqui não há trabalho, moro sozinha.» «Gosto de ti.» «Stamos djuntos» (1). Dizes que sim. E ela continua a falar. Uma torrente de estórias sedentas de serem contadas. Toca-te na mão e tu já sabes que os olhos dos brancos e dos negros te iluminam como holofotes. Que fazes?

Sónia continua a falar. Fico lá no bar todas as noites. Onde te pedi o isqueiro. Mas não vou com qualquer um. Sou puta fina. Mas de ti eu gosto. «Stamos djuntos»? E agora que respondes? Não vais responder «No pintcha»(2) porque sentes a cabeça a estalar como se um trovão te tivesse rebentado no mais fundo do cérebro. E ficas quieto. Uma lágrima quer descer do canto do teu olho. Mordes os lábios. Não deixas.

Bissau 3 de Agosto de 2015
AP.C.

(1) Stamos djuntos – expressão de afecto em Kriol da Guiné-Bissau
(2) No pintcha – em frente, avançar em Kriol da Guiné-Bissau